28 janeiro 2013

Capricho meteorológico e golpe de vista


Caixa das Preciosidades: corpete, 1946

Tudo começou numa tarde de Outono, uma tarde quente, e este é um pormenor a reter. Estamos em 1946. No Porto, inícios de Outubro, há o eléctrico de Paranhos com término na Praça da Liberdade, há um avô que fabrica lenços de senhora, há o hábito burguês, muito citadino, do passeio dos tristes, uma tarde de deambulação inter-geracional pelo espaço público sem a alçada masculina, ainda há a época de Setembro para as cadeiras retardatárias e há o hábito do finalista na véspera do exame que numa aberta vai avaliar as passantes sensatas no passeio dos tristes.
Uma senhora baixa desce do eléctrico, cabelo recolhido sob chapéu sóbrio e pequeno véu sobre a face, com adolescente crescida, cabelo solto, comprido e ondeado. Uma mãe e sua filha, lado a lado. Um vulto escuro e o brilho de um alegríssimo amarelo estampado, corpete cintado com botões grandes madrepérola e saia rodada, certamente com saiote que quebra a transparência dos quatro lenços que assim unidos formam o fresco vestido. Isto viu Carlos que deixa a esquina onde pára e anda. Um jovem magro e alto de cabelo escorrido passa rente e Júlia fita-o, julgando-se tão discreta que crê que só ela terá notado a proximidade dos corpos indo em sentidos contrários, enquanto ele estaca com a certeza de que o seu olhar foi correspondido. Cumprem, a mãe de braço apoiado na filha de amarelo estampado, o passeio dos tristes, sobem 31 de Janeiro sem nada mais retido na memória, mas o jovem magro e alto de cabelo penteado que se fora na direcção dos Clérigos reaparece aqui no cimo da rua por golpe mágico a atravessar à nossa frente e por entre um rubor mal disfarçado chocam-se os olhares, o ar rarefaz-se e já se afastam outra vez cada um por seu caminho, o resto do passeio em desassossego numa desatenção total às montras e às modas. 
A hora do regresso, o eléctrico de Paranhos, o costume. Meia hora de viagem a baloiçar nos carris desnivelados pelas raízes das alamedas ou pelos solos que cedem às chuvas, colar pensativa o nariz ao frio da janela como em criança, regressam a pé muitos que não ganham para o passe, mais uma paragem, entram e saem passageiros, Paranhos Fim de Linha é a próxima, já se avista. Caminham, ao fundo hão-de virar à esquerda e subir a pequena ladeira até casa, mais uns passos de novo, nítidos, tão rápido se volta que não está certa se viu o que viu, a uma cautelosa distância ele procura pisar sem barulho, abranda, moram ali, isso, acende um cigarro, ela corre escadas acima, corre até à janela do quarto, ali ele, alto e magro, atira uma nuvem de fumo por onde espreita, ela por detrás da cortina afasta-a com a mão, a cara aproxima-se da luz, ilumina-se um sorriso brevíssimo,  ai dos que não obedecem à doce voz maternal, a mão acena ou desprende-se enquanto a cortina desce e se esfuma um rasto de ouro estampado.

E aqui eu arrisco a tese de que não fora aquela tarde anormalmente quente pedindo roupa leve, não fosse o requinte do avô no desenho dos seus lenços e a destreza da costureira, não fosse o brilho do amarelo estampado fazendo sobressair a jovem passageira apesar da distância à esquina de vigia, não fosse a conjugação de tudo isto e mais actos num mesmo preciso instante e não estaria eu agora a efabular sobre os mistérios da vida. 


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27 janeiro 2013

O par espantoso



Fotografia: DrGica

Javier Marias fala disto em Todas as Almas. O narrador oxoneano está no museu Ashmolean, vindo da Tayloreana, num sábado desses dois anos que iriam marcar a sua vida e obra de professor. No átrio do museu, quase deserto como acontecia habitualmente antes da remodelação de 2009, cruza-se acidentalmente com Clare Bayes, a mulher que ele gostaria de encontrar mais vezes e que há algum tempo lhe impõe um afastamento incompreensível. Clare está acompanhada pelo velho pai e pelo seu filho, Eric, de sete anos. O narrador persegue-os furtivamente, pelo interior do museu, perfilado atrás de colunas, ignorando um gesto irritado com que, junto dos Pré-Rafaelitas, ela o intima a desaparecer. Mas vê a cara do velho e do menino e nota a incrível semelhança entre ambos e entre eles e Clare Bayes, a mulher que ele” tanto tinha beijado” ( aliás muito menos do que pretendia). Então escreve: “ há ideias que podem ou não associar-se, mas se se associam provocam espanto: a ideia da criança e a ideia do beijo, a ideia do velho e a ideia do beijo, a ideia da criança e a ideia do velho. O par espantoso do velho é a criança. O par espantoso da criança é o velho, o do beijo é a criança e o da criança o beijo, o do beijo o velho e o do velho o beijo, o meu beijo ...(...) O beijo dos três.”

O par espantoso de David Lynch é um ser que não chega a levantar-se das trevas, num muro das traseiras de um café de bairro, em Mulholland Drive.
O par espantoso de Florence Welch é a máquina.
O par espantoso de António Barreto é Mefistófeles, de cartão, em tamanho natural, a fazer a campanha “Regresso aos Mercados “do Pingo Doce. Podem ou não associar-se, mas se se associam, destroem a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
O par espantoso de The go-between, o romance de L.P. Hartley, é a frase solene de abertura: “The past is a foreign land”. E, no filme de Joseph Losey, a imagem do jovem Leo a correr pela vereda deserta ao descobrir a tortura da carne, como dizia Tolstoi. Enquanto corre sem destino o rapaz grita:  Delenda est Belladonna. Belladona é Lady Marion. Beladona é o veneno. A linda Marion, o amor nos celeiros como um veneno oculto. O par espantoso da flor é a sexualidade, que dependendo da dose, é medicina ou tóxico. O par do sexo entrevisto é Marion. E Leo está provando todos.
O outro par da beladona, mais benigno, é a camomila .
O par espantoso da mulher que passa sem cessar, entre o polegar e o indicador, o debrum dos lençóis e outros tecidos de algodão, é Dora, a paciente de Freud .
O par espantoso de Walter Benjamin são os cumes brancos dos Pirinéus.
O par espantoso de A. é o seu filho morto.
O par espantoso da Mité é o Galvão, que namorou seis meses com ela há vinte anos, antes de morrer num terrível acidente.
O par espantoso de Lolita é a mãe da Lolita.
O par de Dawkins é deus (pouco Poderoso) e o do santo Papa é o preservativo lubrificado Meme.
O cão de Hitler pode ou não associar-se ao epigrama de Mandelstam a Stalin. Mas se se associa, os que evocam o cão de Hitler provocam espanto.
O par espantoso de Luxo de Banho é Ach Brito, a chaminé alta junto à rua do Cónego Ferreira Pinto, à Boavista.
Dias Loureiro, Cavaco, Rosalina e uma estrada no Brasil ou o pranto de Miss Cabo Verde, bolseira numa Escola profissional da Lousã. Podem não se associar. Mas associam-se .
O par espantoso de Joaquim Manuel Magalhães é Cavafys.
O de Barthes é a mãe, os eléctricos e a madeleine de Proust.
O par espantoso de Orson Welles é Kane ou o trenó Rosebud ou o Terceiro Homem, o nível mais baixo da cidade de Viena.
O par espantoso de Hanna Arendt é Heidegger e a banalidade do Mal.
O par espantoso do senhor Lucas era o seu carro Anglia, um pequeno mundo. O par espantoso de Frida Khalo é uma coluna quebrada. O par espantoso do meu querido Mestre era a palavra “ justamente”, justamente dita com a elegância com que António o fazia. O par espantoso da cidade de Pinhel, quando surge ao longe na estrada de Valbom, é a maldição que Juan Goitysolo lança às costas da Pátria. O par espantoso da Lena é o ginásio A Felicidade do Corpo. O par espantoso da Dona Hermínia era um cágado míope, que desaparecia debaixo das camas, em perpétua hibernação. O par espantoso da Ananda é o trabalho da dor. O par espantoso de Pauline Réage é o padeiro de Santa Clara a Velha, o beijo de Pauline, a chave na porta, a surpresa do padeiro, o beijo do padeiro, o meu beijo…(…) O beijo dos três.

Todas as Almas, Javier Marias, D. Quixote

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20 janeiro 2013

O cão de Saint-Just




A historiadora Raquel Varela, num post do blog 5dias a que chamou O cão de Hitler, considerou que signatários de uma petição contra o abate de um cão que atacou mortalmente uma criança, eram apoiantes “de um movimento ultra reaccionário ...que inclui a rejeição do progresso...”. Um dias depois Daniel Oliveira, no Expresso Online, repetiu os argumentos da historiadora. Entre as tomadas de posição da semana uma, assinada por Mário de Carvalho, foi especialmente esclarecedora. Uma pérola de especismo ingénuo.

Imagino que talvez existam religiões que acreditam num deus que criou o homem à sua semelhança, dominando sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. E que esse deus, depois de ter criado o homem e a mulher, por essa ordem, os abençoou e lhes disse para se multiplicarem, encherem e sujeitarem a terra.  Ou que acreditam que deus criou o cavalo, a mula e o asno para serem cavalgados, e o gado para ser comido.
Se esta é a letra dos livros sagrados das mais populares religiões monoteístas não espanta que, por mais que os sábios defendam um entendimento não literal dos livros, seja esta a visão natural dos crentes.
Alguns pensam que esta ideologia de expansão e sujeição da terra e de “tudo o que se na terra se move” é característica dos europeus dos últimos seis séculos. Mas se estudarmos as civilizações do passado dificilmente encontraremos um povo que, atingido um certo grau de crescimento, não tenha invadido as terras e os mares dos vizinhos, matado, violado pilhado e escravizado, sem hesitações e com a soberba de quem está, afinal, a zelar por valores mais altos, frequentemente coincidentes com o alegado bem estar da comunidade de pertença.
Que os adeptos das religiões reveladas se vejam a si mesmos como eleitos, não me espanta. Mas há outra raça de crentes. Os que acreditam no progresso.
Na minha infância o progresso era inelutável. Os adeptos da nossa religião eram “progressistas” e os outros “reaccionários”. Os reaccionários eram baixos, maciços, tinham anéis nos dedos grossos, vestiam uniformes infantis e fingiam combater nas matas dos subúrbios. Os progressistas eram magros, esquálidos, envoltos em nuvens de tabaco, muito cultos por estadias forçadas em cadeias e sanatórios. Não havia mulheres reaccionárias, embora um tio me tivesse relatado uma manifestação das Mulheres Patriotas e me assegurasse que nas esquinas da praça P. ainda se podia ouvir uma voz estridente que gritava: Abaixo o Amor Livre .
E havia mulheres progressistas, lindas mulheres progressistas de rendas pretas e bigodes, mitenes e cheiro almiscarado, que os miúdos beijavam com relutância. Também havia as heroínas da classe operária, quase sempre do longínquo Sul e as estudantes progressistas que só conheceram o annus mirabilis de Philip Larkin com dez anos de atraso, como é costume no meu país, entre a edição da terceira versão de O Amante de Lady Chatterley e o último LP dos Beatles, felizmente ainda a tempo, para mim.
Os amigos dos meus pais tinham algumas dúvidas sobre se as pessoas eram intrinsecamente boas ou más. Mais tarde aprendi que na direita se acreditava que, devido ao pecado original, o ser humano era naturalmente mau. Enquanto que desde Rousseau os optimistas sabiam que o bom selvagem era corrompido pela sociedade.
Mas no tempo dos reaccionários e dos progressistas ambos estavam de acordo em que, bons ou maus, os homens e as mulheres eram, sobretudo, ignorantes. Os reaccionários argumentavam que a ignorância era tanta que a gentalha não se encontrava preparada para a democracia. E os progressistas admitiam que talvez fosse necessário ensinar as pessoas a ser livres. Este debate, garanto-vos, não era apenas teórico.
Quando os reaccionários foram apeados do poder, logo no dia seguinte, todos eram progressistas. As manifestações de regozijo foram de uma unanimidade esmagadora. Quando os reaccionários recuperaram o poder já pouca gente se lembrava da história. E quando ninguém se lembrava já da história, os reaccionários começaram a chamar reaccionários aos que se lembravam da história. E é assim que estamos hoje, João.
Esta digressão vem a propósito dos animais. No tempo do debate de ideias os animais já não falavam. Se alguém se lembrasse do tema caía-lhe um neo-realista em cima a dizer que estava a desviar o povo leitor dos problemas principais. Esta imagem é injusta, porque os neo-realistas foram gente boa e mais próxima dos animais que qualquer outra corrente literária. Mas não há imagens justas na era da necessidade. Quando as coisas amansaram e depois dos direitos do homem, dos direitos da criança, dos direitos das crianças hospitalizadas, dos direitos das mulheres, por essa ordem, houve quem falasse dos direitos dos outros animais. Um prémio Nobel escreveu sobre o tema. Um filósofo moralista também. Mas estala o verniz de cada vez que um cão O’Neilliano, um cão problema, entra sem licença no poema. Floresce então o especismo mais puritano, quase sempre escudado em valores como a justiça, a segurança ou aquilo que vale mais ou menos na frágil balança de equilíbrios com que nos governamos. E os progressistas, meu deus, salva-nos dos progressistas, porque eles acreditam que são parecidos contigo, omniscientes e subtilíssimos, e como tu, não terão misericórdia com os répteis levantados do chão.


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13 janeiro 2013

Não é nenhuma dor, só uma impressão.




Vai no segundo comboio. À frente. Nada no meio da pista. Atrás vão o Tiago, o Mídio Garcia e a Tânia Loura, por esta ordem. Ela vai sempre à frente. Desde a primeira vez. Pôs-se à frente e ficou assim. No segundo comboio, quem vai à frente é ela. Do lado de dentro, no terceiro comboio, nada a Leonor. Vêem-se pelo canto do olho. Não é fácil. Estão a treinar a respiração e há sempre muita água à volta dos olhos e da boca. E vontade de esfregar os olhos. Não se pode. Tem de se levar os braços bem à frente, juntinhos, e puxar a água para baixo, com força. Só assim pode ir a direito e continuar à frente do Tiago. Mas vê sempre a Leonor. Vai mesmo ao lado, chegam ao mesmo tempo. Às vezes parece-lhe que leva vantagem. É impossível que a Leonor seja capaz de um esforço assim. Mas quando os braços vão tocar na parede de fundo, ou a cabeça, que é o que bate quando se distrai, olha sempre para a sua esquerda e é como se olhasse para um espelho. Lá está a Leonor, o fato de banho azul eléctrico dela, a touca, a concentração da Leonor, fazendo o movimento simétrico do seu, impecável no meio da pista, como ela, à frente da procissão de meninas e meninos que se começa a encostar às bóias para parar ao lado dela. E dela.
Hoje ela sentiu a dor na barriga e pareceu-lhe que era aquela dor. Mas nunca acredita. Alguma coisa lhe diz que está curada, não tem doença, apenas aquelas coisas que todas as pessoas têm e de que os pais dizem: não é nada, vai já passar, não penses mais nisso. E fazem uma massagem, não é nada, não penses mais nisso, já está a ir embora, estás a ver, já não é nenhuma dor, só uma impressão, um numa escala de dez. Olhou para a bancada. Hoje a mãe não tinha vindo. A mãe sai do trabalho e vem ter com ela à piscina. Senta-se na bancada e ela vê-a, isto é, quando pode, que agora com a respiração, tem de ficar a ver as bolhas de ar debaixo da água. E quando sai com a cabeça, os olhos ardem e de facto não vê senão o brilho da água, as bóias-laranja que lhe garantem que está a nadar no meio da pista, a sombra da Leonor ao lado. Mas sabe sempre quando a mãe chega e quando está lá, para descer até à borda da piscina, içá-la para os azulejos, chamar-lhe aquele nome que a mãe sussurra quando não está zangada e é um nome que ninguém conhece, que lhe parece ser um segredo entre as duas, o seu verdadeiro nome. E a toalha com que a mãe a ajuda a secar, as meias quentes que insiste em lhe calçar, antes mesmo de os pés estarem secos, e como lhe esfrega o cabelo, de uma forma que deita por terra as más ideias e a deixa aturdida, tonta, mole e cheia de fome para o lanche. Hoje, ela nada, sabendo que a mãe não veio, teve mais trabalho decerto. Terá de se limpar sozinha, vestir sozinha e voltar para a escola na carrinha da classe, com as outras meninas que não ficaram com os pais e os avós, na piscina. Mas na bancada, para lá do vidro, está a menina Glória, a Sextante Cial, que vem sempre com a classe e fica a vigiar durante a aula de natação. E, dando passos largos ao longo da piscina, anda o professor Travessas, de tanga preta e T-shirt branca, com o corpo a cheirar a cloro e os pés como barbatanas, um peixe grande que não para de gritar ordens, largar escamas e incitar os meninos dos comboios atrasados.
Dói-lhe a barriga, não pode negar, sente-se tonta, tem de chegar à parede, onde há pé, e agarrar-se à borda da piscina a fazer respirações até passar este barulho que lhe rebenta os ouvidos. Até se calar esta sirene que ligaram sabe lá porquê. Deve ter acontecido algum desastre porque as pessoas correm ao longo da borda da piscina e estão a apagar as luzes. Como se pode nadar com as luzes apagadas. Apenas com a luz que vem do fundo, que são os olhos dos peixes do fundo das piscinas e só brilham à noite, quando as meninas já dormem em casa e os peixes do fundo se aventuram a sair dos ralos. Tem de arranjar força para chegar à parede. Se não der esta braçada o Tiago vai chocar com as pernas dela. E o Mídio Garcia, sabe-se lá. Vão tirar-lhe a cabeça do comboio, ou tropeçar no corpo dela, enrolarem-se no corpo dela, engolirem a água como agora ela está a engolir. Talvez não consiga chegar à cabeceira, ao lugar da piscina onde há pé. Mas pelo menos às bóias laterais. Estende os braços na direcção das bóias laterais, até à fronteira do comboio da Leonor. Vê o corpo azul que se aproxima e julga ver os braços estendidos para ela, o corpo da Leonor estendido para ela, onde as bóias do comboio confluem. Porque diabo está a arrastar-se no fundo da piscina, que ideia esta de apagarem as luzes todas, como irão os peixes encontrá-la e levá-la para cima, Splash, ouve o barulho de um objecto pesado a cair na água, lá em cima ao fundo, ou será o som que faz um peixe quando salta para o ar, Splash, ou o barulho do corpo do professor Travessas quando se atira para as águas escuras da piscina. Se ao menos a mãe chegasse. Ou talvez tenha chegado e seja a voz dela a repetir junto ao ouvido o seu nome secreto.

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06 janeiro 2013

O automóvel da senhora Morel e o espírito puro.




Naquele mês de Fevereiro ela tinha 21 anos e ensinava Filosofia numa cidade a duzentos quilómetros de Paris. Tinha um namorado especial. Um sedutor obsessivo e serial que conquistava as mulheres com a elegância do verbo e a fogosidade do seu espírito. Tinham feito um pacto, cuja face pública viria a ser o compromisso de transparência mútua, mas que incluía alíneas não reveladas, como a de que quase tudo, no relacionamento com as outras pessoas, lhes era permitido. Viviam em quartos de hotel, tinham pouco dinheiro mas sentiam-se mais afortunados que os ricos, que detestavam.
Rodeavam-se de pessoas amigas, algumas íntimas. Eram, belas e raras, desde a forma de tratamento aos estilos de vida, ferozmente individualistas. Entre elas estava Pierre Guille, a quem ela chamava Pagniez. Era dois anos mais velho, colega do namorado e mantinha uma relação especial com uma mulher casada, Madame Morel ou Lemaire, como ela viria a designá-la nos pseudónimos ficcionais das suas memórias. Madame Morel tinha uma casa no Boulevard Raspail, onde havia sempre um quarto para Pagniez. Era argentina de nascimento, alegre e requintada, “tudo nela mexia sem que nunca parecesse agitada”. O marido, médico, operara milhares de pessoas durante a guerra. Depois, tinha-se sepultado vivo num quarto da casa e, tal como os filhos, parecia apreciar e conviver bem com Pagniez. Madame Morel tinha um carro, bem pouco frequente na época, que Pagniez guiava habitualmente. Ela adorava viajar. Pagniez já a tinha levado a Tours e aos domingos passeavam pelas margens do Marne e nos bosques de Fosse-Repose. Ela impressionava-se com “a fenda de luz que os faróis rasgam no coração da mata”, sobretudo quando pensavam nisso, ao fim do dia, frente a dois Bronx, num bar de Montparnasse.
Em Fevereiro, Pagniez teve uns dias de férias em que aproveitou para visitar a família, no Sul. Como Madame Morel não podia deixar o marido durante os dez dias que duraria a viagem, Pagniez convidou-a. E ela aceitou.
Estava frio mas quase nunca choveu. Pararam em Lyon, onde jantou com uns primos que se escandalizaram com o facto de ela viajar com um rapaz. Visitou uma fábrica de lâmpadas eléctricas e percebeu pela primeira vez a miséria insalubre e a monotonia da condição operária. E depois rumaram à Provença. Viu, em tão pouco tempo, coisas que julgava tão distantes. Sentiu-se como Proust que, quando andou de carro pela primeira vez, disse nunca saber se estava du côté de Guermantes ou du côté de Swann. Arles e as fileiras de ciprestes inclinados pelo mistral, as ruas estreitas de Uzès, em cuja torre ondulava um pavilhão bizarro, “a secura e o cheiro das charnecas junto à ponte do Gard”, Laguiole e o homem que lhe estendia a faca com a marca da abelha, Avignon entrevista da margem esquerda do Ródano, tremendo sob um sol glorioso.
Ela tinha um pequeno mal. Não bem uma doença. Um problema. Que surgira algum tempo depois de ter deixado de ser um espírito puro, quando “o coração, a cabeça e a carne deixaram de estar juntos em grande festa”. Talvez tivesse a ver com o afastamento físico do namorado. Ou com o entusiasmo excessivo dele pela filosofia. E pela literatura. Quando se viam, ao fim de semana, logo em Austerlitz ou em Saint-Pierre-des-Corps, ele pegava-lhe na mão e dizia: “Tenho uma nova teoria”. Mas era incapaz de entrar,“em pleno dia”, num quarto de hotel, ou de perceber que ela sentia agora algo que era mais do que a “fome, a sede ou o sono, uma dor que tecia sobre a sua pele uma túnica envenenada”. Repugnava-lhe o seu corpo “suplicante”. No comboio Tours-Paris “uma mão anónima despertava-lhe ao longo da perna uma perturbação que lhe desagradava profundamente”.
Nesses dias, na Provença, esteve bem. Dormiam em hotéis modestos, onde crepitava um fogo nas lareiras e um gato castrado ronronava. Em Baux, na Reine Jeanne, com a cozinha à vista, tiveram uma refeição de luxo com um vinho de que nunca esqueceu o nome: Mas de la Dame.
Quando voltou a Paris, ao namorado e a Madame Morel, Pagniez estava de novo a uma imensa distância. Ela entristeceu-se e concluiu que “a felicidade tem por vezes as suas asperezas, e que essa era a lição do regresso”.
Quase trinta anos depois escreveu sobre isso. Mais tarde ainda, numa entrevista ao seu biógrafo admitiu que tinha dormido com Pagniez, nessa viagem. Todas as noites.
- Disse a Sartre? – perguntou o biógrafo.
- Não era preciso – retorquiu Simone. Ele sabia.


A Força da Idade, Simone de Beauvoir, 1960, ed. Difel

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