La vraie vie ou uma forma parcial de fuga dissociativa
Ontem tive visita. A minha irmã. Estava bonita, escondendo mal a impaciência por eu ainda não ter saído do isolamento. Como se esta situação dependesse de mim. Lembrei-me da psicóloga quando disse “alguns auto-excluem-se”. Não gosto que me vejam como vítima ou culpado. Apenas como a pessoa que sou.
Mas que pessoa sou? Acho que perseguimos esta questão. Estava escrita num quadro do Gauguin que havia numa casa da minha infância. E a pergunta parecia-me então vir de outro continente, de tal forma me sentia naturalmente inteiro nesses dias. Hoje, sou tanto esse miúdo- espantado frente à reprodução do quadro- como qualquer personagem dos filmes, dos livros, das recordações de então.
A minha irmã vinha com André Bonirre que, desde que partilhou comigo a busca de Ana Paula Inácio, se tornou mais próximo. Esforçam-se para, de uma forma ligeira, falarem da vida de todos os dias. Admiro o modo como o fazem e decoro as palavras deles sem as compreender. Mais tarde, quando tiver todo o tempo do mundo, no silêncio da cela, pensarei sobre elas. Agora não consigo sequer compreender o sentido do que me dizem, de tal forma os olhos me fogem para o que se passa no parlatório.
Vejo as famílias dos outros presos, fascinado. Fico a saber algo mais sobre cada um deles. Mas hoje na visita, não havia preso que invejasse só por não ser eu.
Talvez seja a altura de falar sobre a fuga dissociativa. A fuga é aqui, como calculam, o tema principal dos nossos sonhos. Mas não é a essa que me refiro. Um belo dia, um homem ou uma mulher, encontram-se perdidos de si próprios, sem saber ler os documentos de identidade, sem passado. Como se o presente fosse uma terra estrangeira da qual desconhecem os costumes, a língua, a literatura, a bandeira, o hino.
Essa é a fuga que provavelmente é descrita nos livros de psiquiatria. Nunca a senti nem ao seu sopro.
Falo da fuga como a imagem alucinatória de um presente outro. Não de uma utopia que vagamente perdemos. Mas de imagens vivíssimas do que poderia ter sido a nossa vida.
Como náusea: a visão do Ford Fiesta com o casal à frente e os meninos -são a carinha da mãe- atrás. Ela tem a cara feliz e um pouco tonta das mulheres simples, que ambicionaram viver uma vida simples, e ainda não perceberam que o homem que lhes calhou, o seu homem, vai enlouquecer, e asfixiar com os seus abraços, e ficar de noite acordado com os olhos abertos, aterrado com uma transformação que não compreende. Olho essa gente real à minha volta e agradeço à minha irmã ser quem sou, claramente diferente, pois são eles, ela e o André Bonirre, as minhas visitas. E serem diferentes, elegantes, de um outro mundo, que me fazem chegar com palavras simples, e que facilmente se compreende não ser o mundo da necessidade, desta gente que eu poderia ter sido.
Como abismo: sou o par da mulher tão comovidamente apaixonada que um dia cruzou comigo os olhos numa rua da cidade e o meu amor não está à altura. Porque eu já vi no rosto liso dela, “la petite tâche”.
Como a assombração que visita a mulher que foi J. Moore em As Horas. Desviada da sua existência pacata pela leitura de Mrs. Dalloway. Ou os demónios que visitaram a minha tia Lena, provavelmente quando a via ler Elise ou la vraie vie. (Herdei esse livro, de capas amarelas, duma autora que julgo ser Claire Etcherelli, e desgraçadamente perdi-o). A tia Lena era pequenina, linda e tudo nela me parecia perfeito. Fora bailarina, e mostrara-me uma vez, quase em segredo, um álbum com as suas actuações, invariavelmente coroadas de êxito. Tinha um marido a quem, quando não estava, chamavam o nome de um actor que devia ter estado na moda quando eles se casaram. Percebia-se que a família tinha orgulho nela por ser bonita e ter uma vida, como diziam, tão equilibrada.
Então porque é que me assustava o modo como ela lia Èlise ou la vraie vie? E quando percebi o que era la vraie vie os meus temores se adensaram e vieram a ser tristemente confirmados pelos acontecimentos posteriores?
Mas que pessoa sou? Acho que perseguimos esta questão. Estava escrita num quadro do Gauguin que havia numa casa da minha infância. E a pergunta parecia-me então vir de outro continente, de tal forma me sentia naturalmente inteiro nesses dias. Hoje, sou tanto esse miúdo- espantado frente à reprodução do quadro- como qualquer personagem dos filmes, dos livros, das recordações de então.
A minha irmã vinha com André Bonirre que, desde que partilhou comigo a busca de Ana Paula Inácio, se tornou mais próximo. Esforçam-se para, de uma forma ligeira, falarem da vida de todos os dias. Admiro o modo como o fazem e decoro as palavras deles sem as compreender. Mais tarde, quando tiver todo o tempo do mundo, no silêncio da cela, pensarei sobre elas. Agora não consigo sequer compreender o sentido do que me dizem, de tal forma os olhos me fogem para o que se passa no parlatório.
Vejo as famílias dos outros presos, fascinado. Fico a saber algo mais sobre cada um deles. Mas hoje na visita, não havia preso que invejasse só por não ser eu.
Talvez seja a altura de falar sobre a fuga dissociativa. A fuga é aqui, como calculam, o tema principal dos nossos sonhos. Mas não é a essa que me refiro. Um belo dia, um homem ou uma mulher, encontram-se perdidos de si próprios, sem saber ler os documentos de identidade, sem passado. Como se o presente fosse uma terra estrangeira da qual desconhecem os costumes, a língua, a literatura, a bandeira, o hino.
Essa é a fuga que provavelmente é descrita nos livros de psiquiatria. Nunca a senti nem ao seu sopro.
Falo da fuga como a imagem alucinatória de um presente outro. Não de uma utopia que vagamente perdemos. Mas de imagens vivíssimas do que poderia ter sido a nossa vida.
Como náusea: a visão do Ford Fiesta com o casal à frente e os meninos -são a carinha da mãe- atrás. Ela tem a cara feliz e um pouco tonta das mulheres simples, que ambicionaram viver uma vida simples, e ainda não perceberam que o homem que lhes calhou, o seu homem, vai enlouquecer, e asfixiar com os seus abraços, e ficar de noite acordado com os olhos abertos, aterrado com uma transformação que não compreende. Olho essa gente real à minha volta e agradeço à minha irmã ser quem sou, claramente diferente, pois são eles, ela e o André Bonirre, as minhas visitas. E serem diferentes, elegantes, de um outro mundo, que me fazem chegar com palavras simples, e que facilmente se compreende não ser o mundo da necessidade, desta gente que eu poderia ter sido.
Como abismo: sou o par da mulher tão comovidamente apaixonada que um dia cruzou comigo os olhos numa rua da cidade e o meu amor não está à altura. Porque eu já vi no rosto liso dela, “la petite tâche”.
Como a assombração que visita a mulher que foi J. Moore em As Horas. Desviada da sua existência pacata pela leitura de Mrs. Dalloway. Ou os demónios que visitaram a minha tia Lena, provavelmente quando a via ler Elise ou la vraie vie. (Herdei esse livro, de capas amarelas, duma autora que julgo ser Claire Etcherelli, e desgraçadamente perdi-o). A tia Lena era pequenina, linda e tudo nela me parecia perfeito. Fora bailarina, e mostrara-me uma vez, quase em segredo, um álbum com as suas actuações, invariavelmente coroadas de êxito. Tinha um marido a quem, quando não estava, chamavam o nome de um actor que devia ter estado na moda quando eles se casaram. Percebia-se que a família tinha orgulho nela por ser bonita e ter uma vida, como diziam, tão equilibrada.
Então porque é que me assustava o modo como ela lia Èlise ou la vraie vie? E quando percebi o que era la vraie vie os meus temores se adensaram e vieram a ser tristemente confirmados pelos acontecimentos posteriores?
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