Ética Animal
Há nas Astúrias um velho caminho de montanha a que chamam a Senda do Arcediago. Une Soto de Sajambre, ainda em Leão, com outra pequena aldeia a dezasseis quilómetros, onde nunca cheguei. No tempo em que podia percorrer esses trilhos aconteceu-me, nessa senda, um encontro que vou tentar recordar.
Era uma manhã de sol, talvez excessivo para uma caminhada que se avizinhava tão longa. A aldeia de Soto, está abrigada aos pés da Pena Santa de Castela, um monte verdejante atrás do qual espreitam as escarpas nuas do Canto Cabronero. Nessa manhã a aldeia acordava de uma orgia de sidra, mascarada e gaitas de foles. Alguns músicos curtiam a ressaca tirando horríveis acordes das gaitas de fole e os primeiros miúdos saíam ás ruas mostrando, ainda timidamente, os seus disfarces. Ninguém nos deu os bons dias, mas devia-se notar na minha cara a pouca simpatia, não pelos celtas, mas por aquilo que é a vulgata dos seus símbolos. Um velho, no cimo do povoado, ensinou-nos o início da rota. Ao longo de três esforçadas horas subimos de 1000 a 1800 metros, até entrarmos num belo caminho de agudos lapiás. Passámos uma fonte que enchia um bebedouro. Para trás ficava uma veiga onde pastavam vacas sem guarda e os últimos bosques de carvalhos e faias. Tínhamos que ladear um enorme morro, o Pico Valdepino, numa encosta onde as águas de Inverno tinham, para enganar os caminhantes, desenhado múltiplos trilhos. Nessa altura, os que gostam de percursos bem definidos começaram a dar sinais de inquietação. Não se via vivalma e subitamente o céu escureceu e a temperatura baixou. Tudo se modificou. Éramos poucos, não falávamos, mas algumas interjeições mostravam que uma nuvem negra se instalara também já nas nossas cabeças. Eu ia à frente, não porque os meus companheiros confiassem em mim, mas porque tinha as cartas e por natural tendência. (Deplorável tendência que me pôs à frente das caminhadas e agora nesta cela solitária.) Numa curva do caminho, uma pequena portela, ouvi o rocegar de mato e surgiu-me à frente um pequeno vitelo. Ficou tão espantado por me ver como eu. Minto. O espanto do animal era muito maior. Nunca vi atenção de um herbívoro tão concentrada num objecto à sua frente, as pernas delgadas, vacilantes, o nariz fremente. Como não cabíamos os dois no trilho inclinado, subi um pouco para ele me poder cruzar. Os meus companheiros, imaginando que se tratava de um javali, reuniram-se uns trinta metros atrás, no alto da portela, junto a um penedo. Acabei por me reunir a eles porque o vitelo não se mexia daquele sítio de espanto e o mesmo sucedia com o meu grupo. Ficámos algum tempo a espreitar a chegada de outras vacas, a imaginar o trilho e a discutir o futuro da caminhada. A nuvem negra sobre o Cabronero tapava-lhe os cumes. Alguns lembraram-se da queda rápida de nevoeiros na zona e da água que começara a escassear- ninguém quisera beber ou abastecer-se no bebedouro.
Voltámos pelo mesmo caminho . O vitelo seguiu-nos. Como nos tivéssemos dividido ele caminhava entre nós. Era um recém-nascido, com o cordão umbilical mumificado, tombando do ventre, ao pendurão. Tudo lhe parecia meter confusão e os cheiros, as irregularidades do terreno, faziam-no parar com frequência. Caminhou assim ao seu passo, não muito diferente do meu, durante meia-hora. A certa altura, mesmo por debaixo do enorme torreão que é o Pico Valdepino, corria um mísero regato coberto de mato que se ultrapassava de um salto. O recém-nascido abordou o obstáculo com mil precauções e ao fim de uma exploração sensorial que parecia a nada conduzir ficou imóvel. Tentei incitá-lo à travessia, colocando-me ao seu lado, exemplificando. Chamei-o. Falei-lhe como se fala a um bebé. Ele deitava-me uns olhos aflitos.
O grupo reunira-se de novo junto à fonte e fui-lhes dar conta da situação. Enquanto falávamos, desenhou-se na falésia a sombra de uma rapina, naquele seu voo fascinante, de asas imóveis. Levantámos os olhos e num instante tinha-se formado em torno do Pico, na vertical do vitelo abandonado, um bando de mais de doze águias, ou abutres. Ou ambos.
Discutiram-se as seguintes opções: L. que representava a tendência chamemos-lhe rousseauniana , acreditava que não devíamos intervir nas regras normais da natureza e da pastorícia. A mãe vaca não tardaria, e se não fosse o caso, no fim do dia, um pastor daria conta da falta e saberia encontrá-la. L. acredita que existe uma ordem natural de que o homem não participa, e que perturba sistematicamente, ao intervir.
De nada servia lembrar que há uma hora que o vitelo estava sozinho. Que parecia exausto - quanto tempo aguenta um vitelo sem mamar? Que até onde o nosso olhar alcançava não se via vivalma. Que as águias rondavam claramente a sua presa.
A minha tendência, que na altura foi defendida por A., e a que podíamos chamar progressista, propunha que pegássemos no vitelo e o trouxéssemos até ao pasto que víramos na subida, onde, quem sabe, uma teta a adoptaria. Contrapúnhamos à crença nos poderes do instinto maternal e da superior organização da pastorícia de montanha os factos, de todos conhecidos, de mães que matam ou abandonam os filhos, de mães enlouquecidas. Por outro lado nada garantia que os criadores de gado de Soto de Ajambre não estivessem bêbados e assim fossem permanecer enquanto durassem as festas.
C., representando a posição egoísta, argumentou que dava um trabalhão voltar atrás, lá onde ficara o vitelo, que era certo que não o iríamos comer e portanto não retiraríamos nenhuma vantagem de uma hipotética salvação. Percebia-se que o joelho lhe começava a doer o que dava vigor aos seus argumentos. P., o antropólogo molecular louco, disse que nos esquecíamos do ponto de vista das águias, abutres ou ambos. A tragédia do vitelo era a felicidade das aves de rapina- animais selvagens e em vias de extinção, ao contrário dos vitelos. Era a posição dos relativistas. A autodenominada Loura hesitou entre os vários campos. Tendência eclética.
Não vos conto o desenrolar do episódio.
Lembrei-me hoje do olhar do vitelo recém-nascido, encurralado por um insignificante regato e como se deixou abater sobre as patas da frente quando, tremendo como ele, me aproximei.
Era uma manhã de sol, talvez excessivo para uma caminhada que se avizinhava tão longa. A aldeia de Soto, está abrigada aos pés da Pena Santa de Castela, um monte verdejante atrás do qual espreitam as escarpas nuas do Canto Cabronero. Nessa manhã a aldeia acordava de uma orgia de sidra, mascarada e gaitas de foles. Alguns músicos curtiam a ressaca tirando horríveis acordes das gaitas de fole e os primeiros miúdos saíam ás ruas mostrando, ainda timidamente, os seus disfarces. Ninguém nos deu os bons dias, mas devia-se notar na minha cara a pouca simpatia, não pelos celtas, mas por aquilo que é a vulgata dos seus símbolos. Um velho, no cimo do povoado, ensinou-nos o início da rota. Ao longo de três esforçadas horas subimos de 1000 a 1800 metros, até entrarmos num belo caminho de agudos lapiás. Passámos uma fonte que enchia um bebedouro. Para trás ficava uma veiga onde pastavam vacas sem guarda e os últimos bosques de carvalhos e faias. Tínhamos que ladear um enorme morro, o Pico Valdepino, numa encosta onde as águas de Inverno tinham, para enganar os caminhantes, desenhado múltiplos trilhos. Nessa altura, os que gostam de percursos bem definidos começaram a dar sinais de inquietação. Não se via vivalma e subitamente o céu escureceu e a temperatura baixou. Tudo se modificou. Éramos poucos, não falávamos, mas algumas interjeições mostravam que uma nuvem negra se instalara também já nas nossas cabeças. Eu ia à frente, não porque os meus companheiros confiassem em mim, mas porque tinha as cartas e por natural tendência. (Deplorável tendência que me pôs à frente das caminhadas e agora nesta cela solitária.) Numa curva do caminho, uma pequena portela, ouvi o rocegar de mato e surgiu-me à frente um pequeno vitelo. Ficou tão espantado por me ver como eu. Minto. O espanto do animal era muito maior. Nunca vi atenção de um herbívoro tão concentrada num objecto à sua frente, as pernas delgadas, vacilantes, o nariz fremente. Como não cabíamos os dois no trilho inclinado, subi um pouco para ele me poder cruzar. Os meus companheiros, imaginando que se tratava de um javali, reuniram-se uns trinta metros atrás, no alto da portela, junto a um penedo. Acabei por me reunir a eles porque o vitelo não se mexia daquele sítio de espanto e o mesmo sucedia com o meu grupo. Ficámos algum tempo a espreitar a chegada de outras vacas, a imaginar o trilho e a discutir o futuro da caminhada. A nuvem negra sobre o Cabronero tapava-lhe os cumes. Alguns lembraram-se da queda rápida de nevoeiros na zona e da água que começara a escassear- ninguém quisera beber ou abastecer-se no bebedouro.
Voltámos pelo mesmo caminho . O vitelo seguiu-nos. Como nos tivéssemos dividido ele caminhava entre nós. Era um recém-nascido, com o cordão umbilical mumificado, tombando do ventre, ao pendurão. Tudo lhe parecia meter confusão e os cheiros, as irregularidades do terreno, faziam-no parar com frequência. Caminhou assim ao seu passo, não muito diferente do meu, durante meia-hora. A certa altura, mesmo por debaixo do enorme torreão que é o Pico Valdepino, corria um mísero regato coberto de mato que se ultrapassava de um salto. O recém-nascido abordou o obstáculo com mil precauções e ao fim de uma exploração sensorial que parecia a nada conduzir ficou imóvel. Tentei incitá-lo à travessia, colocando-me ao seu lado, exemplificando. Chamei-o. Falei-lhe como se fala a um bebé. Ele deitava-me uns olhos aflitos.
O grupo reunira-se de novo junto à fonte e fui-lhes dar conta da situação. Enquanto falávamos, desenhou-se na falésia a sombra de uma rapina, naquele seu voo fascinante, de asas imóveis. Levantámos os olhos e num instante tinha-se formado em torno do Pico, na vertical do vitelo abandonado, um bando de mais de doze águias, ou abutres. Ou ambos.
Discutiram-se as seguintes opções: L. que representava a tendência chamemos-lhe rousseauniana , acreditava que não devíamos intervir nas regras normais da natureza e da pastorícia. A mãe vaca não tardaria, e se não fosse o caso, no fim do dia, um pastor daria conta da falta e saberia encontrá-la. L. acredita que existe uma ordem natural de que o homem não participa, e que perturba sistematicamente, ao intervir.
De nada servia lembrar que há uma hora que o vitelo estava sozinho. Que parecia exausto - quanto tempo aguenta um vitelo sem mamar? Que até onde o nosso olhar alcançava não se via vivalma. Que as águias rondavam claramente a sua presa.
A minha tendência, que na altura foi defendida por A., e a que podíamos chamar progressista, propunha que pegássemos no vitelo e o trouxéssemos até ao pasto que víramos na subida, onde, quem sabe, uma teta a adoptaria. Contrapúnhamos à crença nos poderes do instinto maternal e da superior organização da pastorícia de montanha os factos, de todos conhecidos, de mães que matam ou abandonam os filhos, de mães enlouquecidas. Por outro lado nada garantia que os criadores de gado de Soto de Ajambre não estivessem bêbados e assim fossem permanecer enquanto durassem as festas.
C., representando a posição egoísta, argumentou que dava um trabalhão voltar atrás, lá onde ficara o vitelo, que era certo que não o iríamos comer e portanto não retiraríamos nenhuma vantagem de uma hipotética salvação. Percebia-se que o joelho lhe começava a doer o que dava vigor aos seus argumentos. P., o antropólogo molecular louco, disse que nos esquecíamos do ponto de vista das águias, abutres ou ambos. A tragédia do vitelo era a felicidade das aves de rapina- animais selvagens e em vias de extinção, ao contrário dos vitelos. Era a posição dos relativistas. A autodenominada Loura hesitou entre os vários campos. Tendência eclética.
Não vos conto o desenrolar do episódio.
Lembrei-me hoje do olhar do vitelo recém-nascido, encurralado por um insignificante regato e como se deixou abater sobre as patas da frente quando, tremendo como ele, me aproximei.
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