15 agosto 2003

Vigilantes

O verão liquidou o governo. Depois de deprimir a nação está a levá-la ao suicídio - diz-me o André que sabe o que é fluoxetina e o que a casa gasta. E liquidou as oposições que se confundem com os governos. E essas coisas a que pomposamente se chama protecção civil, gabinete de crise, segurança social. O burro morreu abandonado na estrada de Bensafrim. E os carvalhos, as faias, os amieiros, os castanheiros. Estavam já aliás todos classificados. Em vias de extinção.
Mas o verão destruiu também o que restava da esquerda e da direita institucional.
E ardeu também o povo, para quem tinha ilusões. Alguns, por ingenuidade ou ofício, usaram ainda, sem pudor, palavras como solidariedade. Ouvi uma reportagem em que os habitantes da aldeia, chamemos-lhe Vila Pouca, considerada em grande perigo, eram entrevistados.
-Então, as chamas estão à vista, o que vão fazer?
- Não. O vento está a mudar, o fogo não vem para aqui, vai-se desviar para Tinjo.
-E os senhores o que vão fazer? Vão ficar vigilantes?
- Eu tenho a certeza que aquilo vai para Tinjo.
- Quer dizer que vão dormir descansados?
- Eu vou dormir descansado. Está a ser levado para Tinjo.
Vão ficar vigilantes. Vigilantes. Repetia o repórter até à náusea. E o povo de Vila Pouca, duas mil almas, escondido nos seus buracos, boçais, vigilantes, que arda o Tinjo, ignorantes, vigilantes, na segunda feira lá estarão em fila à porta da junta ou da caixa, humildes, vigilantes a estender a mão à esmola do Bagão, agradecidos, vigilantes.

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