18 setembro 2003

Até aqui viemos


No começo do século XXI o narrador de O Mal de Montano encontra-se sózinho e sem rumo numa estrada perdida. Pensa que a literatura está perdida e por instantes julga poder salvá-la. Nessa estrada, à qual volta sem cessar, com múltiplos disfarces e várias idades, encontra gente que interpela. Emily Dickinson, com um vestido comprido, branco e passeando um cão. Pergunta-lhe por Musil. Ela responde apenas:" Bruma".
"Segui o meu caminho, toda a noite ouvi passar pássaros, voei com eles. Ao amanhecer, ao desviar-me da estrada perdida, vi Musil perto de um abismo. Camisa branca e com o colarinho aberto, capote negro até aos pés, largo chapéu vermelho. Estava pensativo olhando o chão. Levantou a cabeça e olhou-me. À nossa frente só havia o vazio." É o ar do tempo", disse-lhe. Olhou para o horizonte de névoas. " Não nos resignemos a oferecermo-nos à  época tal como nos anseia", disse-me.
Até aqui viemos. Aqui estamos. À beira de um abismo, junto a uma estrada perdida, frente a um horizonte de bruma.
Aqui estamos. Perguntamos sempre. Perguntamos aos nossos iguais. Aos que tomamos como nossos. Espectros como Dickinson, Kafka, Walser, Tamara Kamenszain. Reconhecemo-nos por uma senha: "Não deves dizer que me compreendes".
No Império Austro-Hungaro em decomposição rápida, no mundo depois do fogo de Manhatan.
Aqui estamos. À beira do abismo. Não nos resignamos a oferecermo-nos à época.
É esta gente, esta literatura, que quero para mim.

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