19 outubro 2003

Manuel Vasquéz Montalbán

Aparentemente, estamos en una situacão óptima para el establishment: ellos se lo guisan y ellos se los comen. (El Europeo, 1997)



No Aeroporto Internacional de Banguecoque, há oito anos, enquanto esperava um voo de ligação para Frankfurt, senti um frio cuja origem não era capaz de precisar. Comprei, numa das poucas lojas abertas, um elefante cujas patas se desconjuntam de cada vez que se tenta levantar. A certa altura da madrugada passaram três irmãs da congregação da Beata Teresa de Calcutá. Mas nem essa visão me apaziguou. Hoje recebo a notícia da tua morte em trânsito, com o atraso habitual de quem nada espera dos periódicos e, sobretudo aos domingos, não abre a televisão, e aboa-se aquela angústia esquecida.
Esperava há algum tempo o livro que anunciaste em 1997: No século 21 aparecerá a novela Milénio, onde Carvalho dará a volta ao mundo e passará em revista os referentes míticos do século 20. Verá o que ficou de Hiroshima, de Sarajevo ou da San Francisco dos hippies dos 60, no final de um século que se caracterizou por construir ruí­nas. Esta novela será a última do Carvalho investigador e uma homenagem a Júlio Verne e também a D.Quijote e a Sancho. Levaste contigo, para a que seria a tua última viajem, as provas da primeira parte de Milénio, e de certa forma como desejaste, Pepe de Carvalho sobreviver-te-á. Viveste bem. Estiveste onde devias: nos cárceres de Franco, na movida como exercí­cio quase poético, na explosão democrática do post franquismo e depois na crítica implacável ao sistema que continua a criar injustiça, desigualdade e desordem ao mesmo tempo que, e isso é ainda mais intolerável, se auto proclama como a única solução. Bebeste bem, comeste com requinte e disso deste receita. Defendeste o Barça, como parte do país da tua infância. Detestaste a escrita à procura de Prémio e a pesporrenta crítica engravatada, os que construíram um muro de betão entre as praias de Espanha e o resto do país, os dependentes de El Corte Inglés, o politicamente correcto incluindo na versão de esquerda. É verdade que o Pepe Carvalho queimou alguns livros. E que limpou o rabo a outros. Mas isso é para esquecer. Do Manifiesto Subnormal, Assassinato no Comité Central, passando pelos Mares do Sul, Pássaros em Banguecoque, O pianista, Franco, Galindez, deixaste-nos o que nunca te poderemos agradecer. A tua poesia não traduzida: Praga, Pero el viajero que buye; os teus ensaios sobre a Crónica Sentimental de Espanha.
Agora, em Dezembro, virá a primeira parte de Milénio e será a morte de Pepe Carvalho. Depois não entraremos mais numa livraria de Espanha com a esperança de encontrar um novo livro teu. Desaparece esta semana a tua coluna no El Pais.
Tu foste un hombre de mi vida, Manuel. Por cá continuaremos, enquanto não nos trair o coração. Uma coisa prometemos: levar, nem que sejam escondidas, a memória e a utopia. Sem medo: comendo, bebendo, amando. Cumprir o teu programa mínimo que era, vou-me lembrar: Criar problemas.

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