Tenho o champanhe e a efusão guardados. Não me chamem de esquerda.
Se a esquerda não comemorar efusivamente um facto destes, não é digna de se chamar esquerda."José Mário Silva
Um dia, estava em Bucareste, numas férias de turista pobre. Era uma avenida de imponência pirosa que levava ao Palácio Presidencial e nessa avenida havia um livraria, coisa rara naquela paisagem. Pedi um exemplar, em romeno, da Alice no País das Maravilhas. A funcionária disse que não, que não havia. Perguntei-lhe se não tinha vergonha de só ter livros do Ceausesco, da mulher do Ceausesco, dos filhos do Ceausesco. E repeti-lhe uma vez, duas, a pergunta. Ela ligou o telefone e passámos a ter a companhia discreta de uns senhores de gabardina. Dois anos depois Ceausesco caíu e senti-me feliz. Mas quando, numa estrada não identificada, lhe deram um tiro na nuca, senti-me mal, qualquer coisa indefinida que não me faz ter orgulho da minha humanidade, seja lá isso o que for. Eu não acredito nas massas populares a festejar a libertação. Procuro sempre, na turba em festa, a livreira de Bucareste em genuíno espalhamento de alegria.
Saddam caíu quando, à revelia da lei internacional, essa coisa frágil que a segunda guerra mundial foi construindo, as poderosas tropas americanas invadiram o Iraque. Não caíu pela luta corajosa do seu povo oprimido, nem pelo sacrifício isolado de uma vítima que dele se tivesse acercado para fazer justiça. O que no domingo mostraram impúdicamente foi um velho num buraco a tentar respirar por um tubo e a sobreviver a comensais tão velhos como a nossa espécie: piolhos. Alegrar-me porque vai ser julgado por um tribunal levantado por Bush? Zé Mário, eu escrevi como resposta à vossa primeira reacção: não verto, nesse brinde, o meu champanhe. E agora digo-te: não comemoro. Nenhuma efusão, nem ardor, nem veemência, nem fervor. Não sou digno que me chamem de esquerda. Não me chamem de esquerda, por favor.
Um dia, estava em Bucareste, numas férias de turista pobre. Era uma avenida de imponência pirosa que levava ao Palácio Presidencial e nessa avenida havia um livraria, coisa rara naquela paisagem. Pedi um exemplar, em romeno, da Alice no País das Maravilhas. A funcionária disse que não, que não havia. Perguntei-lhe se não tinha vergonha de só ter livros do Ceausesco, da mulher do Ceausesco, dos filhos do Ceausesco. E repeti-lhe uma vez, duas, a pergunta. Ela ligou o telefone e passámos a ter a companhia discreta de uns senhores de gabardina. Dois anos depois Ceausesco caíu e senti-me feliz. Mas quando, numa estrada não identificada, lhe deram um tiro na nuca, senti-me mal, qualquer coisa indefinida que não me faz ter orgulho da minha humanidade, seja lá isso o que for. Eu não acredito nas massas populares a festejar a libertação. Procuro sempre, na turba em festa, a livreira de Bucareste em genuíno espalhamento de alegria.
Saddam caíu quando, à revelia da lei internacional, essa coisa frágil que a segunda guerra mundial foi construindo, as poderosas tropas americanas invadiram o Iraque. Não caíu pela luta corajosa do seu povo oprimido, nem pelo sacrifício isolado de uma vítima que dele se tivesse acercado para fazer justiça. O que no domingo mostraram impúdicamente foi um velho num buraco a tentar respirar por um tubo e a sobreviver a comensais tão velhos como a nossa espécie: piolhos. Alegrar-me porque vai ser julgado por um tribunal levantado por Bush? Zé Mário, eu escrevi como resposta à vossa primeira reacção: não verto, nesse brinde, o meu champanhe. E agora digo-te: não comemoro. Nenhuma efusão, nem ardor, nem veemência, nem fervor. Não sou digno que me chamem de esquerda. Não me chamem de esquerda, por favor.
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