Carta recebida de Silvano
Senhor Luís,
O meu nome é Silvano. Sou segurança na morgue. Não é a primeira vez que lhe escrevo, embora seja, por feitio, discreto e, por caprichos da sorte, pouco habituado à escrita. Mas passou-se comigo ontem uma coisa estranha, e acho que é a si que a devo contar, e aí que a deve escrever, se achar algum mérito a este relato.
Apesar de ser este o meu local de trabalho não se pode dizer que esteja habituado à morte. Por motivos que têm a ver com o meu passado, escolho os turnos da noite, quase sempre como voluntário. Furto-me assim aos doutores da faculdade de medicina, alguns dos quais meus antigos condiscípulos da escola, e às famílias dos mortos. Nos últimos tempos tenho visto a menina que aí escrevia. Ela trabalha até horas despropositadas e ignora-me, apesar de haver alturas em que eu sou a única coisa viva no edifício, e, ouso dizê-lo, no quarteirão. Não a vejo comer, dá cabo da saúde, está cada vez mais magra e macilenta. Mas não devo falar dela e não é por isso que lhe escrevo.
Sucede que para passar o tempo e espalhar o sono vejo televisão, quase sempre sem som. E vi o que se passou em Madrid. Aquela gente que vinha de manhã para os empregos, gente dos arredores, gente como eu, afastada do êxito e do conforto, gente dos transportes públicos da manhã e do fim dos dias. Li os relatos das suas vidas estragadas contados por aqueles de quem não se despediram. Vi os corpos separados, retalhados pelo aço, suspensos dos destroços. Cada história que conheci era a minha própria história. Também se eu morresse o meu patrão diria era o meu melhor funcionário, um filho quase, e uma mulher havia de chorar a minha falta e depois voltaria a haver sol lá no subúrbio de onde eu vinha e todos encontrariam no esquecimento a sua saúde. Isto tudo eu pensava ontem, no início do turno, a lembrar-me do 11 de Setembro e a ouvir os comentadores dizerem o contrário do que tinham dito anteriormente. E agora ouça a minha revelação e sinta a minha vergonha. Estava num grande desamparo. Tinha desaparecido a raiva e a dor, a dúvida e a euforia e a minha alma esvaziara-se como as ruas de Madrid depois dos funerais. Lembrei-me então que no 11 de Setembro, ao contrário, havia em mim, incógnito, um sentimento que me dava força e me mantinha alerta, bem diferente deste torpor actual. E foi com espanto que percebi que nesse verão eu estava à espera dos capítulos seguintes, da descoberta dos culpados lá onde eles estivessem, e do seu castigo. Partilhava do espírito de vingança. Como o público das salas de cinema de Dogville, tudo em mim estava pronto para aplaudir a execução sumária dos que tinham retirado a dignidade da vida à mulher que a menina Kidman representa.
Seu
Silvano
(recebido nA Natureza do Mal), mail, devidamente identificado.
O meu nome é Silvano. Sou segurança na morgue. Não é a primeira vez que lhe escrevo, embora seja, por feitio, discreto e, por caprichos da sorte, pouco habituado à escrita. Mas passou-se comigo ontem uma coisa estranha, e acho que é a si que a devo contar, e aí que a deve escrever, se achar algum mérito a este relato.
Apesar de ser este o meu local de trabalho não se pode dizer que esteja habituado à morte. Por motivos que têm a ver com o meu passado, escolho os turnos da noite, quase sempre como voluntário. Furto-me assim aos doutores da faculdade de medicina, alguns dos quais meus antigos condiscípulos da escola, e às famílias dos mortos. Nos últimos tempos tenho visto a menina que aí escrevia. Ela trabalha até horas despropositadas e ignora-me, apesar de haver alturas em que eu sou a única coisa viva no edifício, e, ouso dizê-lo, no quarteirão. Não a vejo comer, dá cabo da saúde, está cada vez mais magra e macilenta. Mas não devo falar dela e não é por isso que lhe escrevo.
Sucede que para passar o tempo e espalhar o sono vejo televisão, quase sempre sem som. E vi o que se passou em Madrid. Aquela gente que vinha de manhã para os empregos, gente dos arredores, gente como eu, afastada do êxito e do conforto, gente dos transportes públicos da manhã e do fim dos dias. Li os relatos das suas vidas estragadas contados por aqueles de quem não se despediram. Vi os corpos separados, retalhados pelo aço, suspensos dos destroços. Cada história que conheci era a minha própria história. Também se eu morresse o meu patrão diria era o meu melhor funcionário, um filho quase, e uma mulher havia de chorar a minha falta e depois voltaria a haver sol lá no subúrbio de onde eu vinha e todos encontrariam no esquecimento a sua saúde. Isto tudo eu pensava ontem, no início do turno, a lembrar-me do 11 de Setembro e a ouvir os comentadores dizerem o contrário do que tinham dito anteriormente. E agora ouça a minha revelação e sinta a minha vergonha. Estava num grande desamparo. Tinha desaparecido a raiva e a dor, a dúvida e a euforia e a minha alma esvaziara-se como as ruas de Madrid depois dos funerais. Lembrei-me então que no 11 de Setembro, ao contrário, havia em mim, incógnito, um sentimento que me dava força e me mantinha alerta, bem diferente deste torpor actual. E foi com espanto que percebi que nesse verão eu estava à espera dos capítulos seguintes, da descoberta dos culpados lá onde eles estivessem, e do seu castigo. Partilhava do espírito de vingança. Como o público das salas de cinema de Dogville, tudo em mim estava pronto para aplaudir a execução sumária dos que tinham retirado a dignidade da vida à mulher que a menina Kidman representa.
Seu
Silvano
(recebido nA Natureza do Mal), mail, devidamente identificado.
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