11 março 2004

Vago, impreciso, brumoso

O meu pai sobreviveu a uma hospitalização animado por um pensamento salvador. Quando tivesse alta da enfermaria mergulharia numa piscina de águas frias que lhe dialisariam o sangue entrando pelas axilas e saindo pelas virilhas. Eu saí da Penitenciária de Coimbra, este Verão, cego para outro projecto que não fosse procurar uma pessoa. A que escrevera palavras que me tinham dado a força necessária para não enlouquecer, na iniquidade da cela solitária e do balde higiénico. Alguma certeza deve existir, repetia. Se não de amar, ao menos de não amar. E essa certeza, que se confundia com a resposta a questões decisivas para poder voltar a existir, olhar-vos nos olhos, pedir um emprego, passava por saber o que tinha levado a mais promissora das vozes a procurar a invisibilidade da sua escrita e assim selar, simbolicamente, o fim da literatura.
É mentira que André Bonirre tivesse ido, a meu pedido, aos Açores. André e o que restava dos meus amigos, a minha irmã, e mesmo ela, a mulher a quem tanto julguei amar, tinham ido a banhos, à medida que o calor, os fogos e as férias judiciais tornavam cada vez mais improvável a concessão da minha precária.
Cheguei sozinho à cidade da Horta nos finais de Agosto, antes das festas do Mar, a tempo de alugar um quarto na pensão que fica por cima do Café Internacional. No voo tive febre, suei muito e ao sair do avião as condições metereológicas pareceram-me pouco adequadas à época . Não conhecia ninguém, ninguém me esperava. Fiz o trajecto para a pensão em silêncio, tremendo ao lado do motorista do táxi. Enfiei-me na cama, talvez tenha dormido. Ao acordar escrevi algumas notas de um desespero brando num caderno de capas pretas que ainda guardo. Saí para a rua e ainda era manhã. Nesse dia que me pareceu sem fim caminhei junto ao mar até Alagoa. Na praia um grupo de gente puxava para terra o cadáver de um peixe grande, cinzento, luzidio. Voltei ao Castelo e desci as escadas para a praia de Santa de Cruz. Os iates dos navegadores solitários alinhavam-se no porto e um barco grande exibia a bandeira da Áustria, o que me pareceu espantoso, porque desconhecia que esse país tivesse frota. Tinha frio e reparei que quase ninguém tomava banho. Depois subi ao largo e entrei nos Bensaúde. Pediam homens para a Companhia Inglesa de Cabos Submarinos, mas pagavam mal e não especificavam o tipo de tarefas exigidas. À saída, um rapaz disse-me qualquer coisa que não entendi imediatamente: Ao pé da Capitania estão homens a contratar pessoal para a Companhia Alemã. Pagam melhor. Não lhe liguei e continuei a caminhar até Porto Pim. Não havia nenhuma mulher em Porto Pim, só sangue, sangue de baleia e as vísceras ocas da baleia inchando no mar calmo de Porto Pim.
Voltei a tempo de ver a chegada do barco do Pico. Era sempre manhã, com vento e nevoeiro. O barco tinha uma vela gigante e vinha carregado de crianças esverdeadas, arrastadas pelas mães, de doentes de maca ou apoiados em familiares, tantos que não pensei que o barco do Pico tantos comportasse, e carros, pipas de vinho, sacas, caixotes selados, arcas. O desembarque fez-se em silêncio, como se o nevoeiro recomendasse uma solenidade absurda e abafasse todos os sons. Tropeçou em mim, sem me ver, uma mulher magra que se voltava para se certificar que os acompanhantes a seguiam. John, ouvia-a chamar. E vi um homem com ar de holandês desabituado ao sol a ajudar um rapaz a equilibrar-se no pontão.
Depois, ao fim da tarde, o sol apareceu e com ele o mar e a ilha do Pico. Esquecera-me da minha missão. A prisão, a falta de dinheiro, a deserção dos amigos, a morte iminente da literatura pertenciam a um passado que não era bem meu. Duas pessoas passaram ao meu lado e surpreendentemente falavam uma língua conhecida e era a minha.
À noite subi a rua Cônsul Dabney até à messe dos ingleses e fiquei vagamente a olhar a ilha defronte, as luzes da Madalena e da zona de fronteira, junto à costa. Um homem veio sentar-se à minha mesa. Disse-me que se chamava Thiers de Lemos e que tocava nessa noite no baile do Amor da Pátria. Fui lá, a seu convite. Barbeei-me, tomei banho e vesti o smoking que me emprestou. Dancei com uma mulher chamada Margarida. Desabituara-me do ópio, da doçura das mulheres, do perfume e da loucura das mulheres. Ainda não tinha acabado a primeira varsoviana e já ela me segredava que queria partir.
Eu tinha acabado de chegar. E havia duas coisas que sabia. Não era homem para ela. E alguma certeza deve existir. Se não de partir, pelo menos de não partir.

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