28 abril 2004

Educação sentimental: a questão da blusa.

É difícil explicar isto e não sou seguramente quem melhor o pode fazer. Vou tentar recorrendo a um exemplo.
Uma das poucas vezes que Margarida se encontrou a sós com João Garcia era um fim de tarde, já no Pasteleiro se acendiam luzes. Estavam no quintal da casa, junto a um muro, e um pouco inesperadamente ele segurou-lhe a mão e ela deixou. Esse acontecimento, sabemo-lo, estragou a vida de João. Ali estava a mulher que amava, a pele e debaixo da pele a fina circulação do sangue. Os milhões de corpúsculos da sensibilidade de súbito deslocados para aquela parte do corpo dele. No resto a imobilidade e o silêncio. Como se estivessem para inventar a voz e as palavras para aquele instante. Mas um ruído, uma janela que bateu nas torrinhas, fê-la afastar-se e procurar uma sombra. Depois de se virar para a casa foi ela quem falou: “Não é nada. Só o vento. Que vento havia agora de se levantar”. Ele procura-a. Tinha de novo a mão dela nas suas mas aquela pausa como que a cortara do braço de Margarida. Era outra vez o tempo separado do Faial, e ele o filho do escriturário, embuçado à porta dos Clarcks e dos Dulmos. Viu-a entrar numa corrida e tomou cabisbaixo a direcção do Pasteleiro.
Tempos depois, Margarida está numa casa do Pico e é como se a sua vida se tivesse tornado um veleiro que vira lentamente de bordo. Enquanto os dedos nervosos desabotoam a blusa lembra-se daquela tarde, do vento que não parou de abrir as portas da casa e apagar os candeeiros. E há-de desprezar em João a timidez.

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