24 maio 2004

O par improvável

Dividido entre o apelo do coaxar de rãs e de água nos aspressores—um bocado artificiais— e as folhas brancas brilhantes sigo o instinto. Encostado por acaso escuto o diálogo de um par improvável, ele mais velho de cabelo pouco arrumado, óculos desactualizados e um fato que lhe cai mal e ela irrepreensível de contorno dentro de um vestido de linho claro, acho que se chama Rosete. Ajeito-me melhor em posição invisível e percebo que são amigos, ele tem um jeito especial de fazer um elogio merecido sem deixar resvalar o tom para a banalidade lamecha, caminha com desembaraço sobre a linha e ela perspicaz sabe-o. Sento-me agora de modo mais confortável, apercebo-me de outras pessoas que passam lá em baixo e que fitam Rosete, depois olham para eles, para o par improvável, e voltam a olhar para Rosete. Eles notam os olhares inquiridores mas não alteram o tom viajando agora para assuntos mais intímos. Respeitam os silêncios prolongados, talvez ouçam as rãs, talvez tentem adivinhar qual comecará a próxima palavra ou talvez apenas sintam o que há de sensual na respiração do outro. Tem tudo para ser provável, acontecia o par se tivesse de acontecer. Esqueci-me das horas, as rãs já foram dormir, amanhã cedo levo as folhas brancas brilhantes com letras rigorosas pretas. Pretos serão também os papos debaixo dos olhos que já nem o chuveiro nem a idade me podem agora operar um milagre. Com as folhas brancas brilhantes debaixo do braço posso entrar em salas cheias de homens de fato azul ou às riscas e gravatas vermelhas e mulheres de vestidos garridos com decotes correctos. Todos juntos, em uníssono, daremos mais uns passos no volteio. É no par de Rosete, lá fora, que penso para tomar o freio nos dentes.

PC

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