14 julho 2004

Notícias da lagarta

Agora ela só vê a lagarta de manhã, mal abre os olhos. Quando se debruça no lavatório e faz aquela careta com que avalia as rugas das comissuras, das pálpebras inferiores. E a lagarta flutua preguiçosa no espelho. Quando se senta a tomar o pequeno almoço. E a lagarta ondula sobre a buganvília. Depois, durante o dia, tornou-se tudo mais suportável. Mas ontem, aquele cliente irritou-a tanto que ela franziu os olhos e deixou de ver a sua cara inexpressiva de negociante import-export para só ver o verme insignificante, translúcido, coleante, em movimentos de focagem-desfocagem. E mais que o bicho o seu par espantoso. Eu, como sabem.
Ela telefonou-me. Protestei inocência. Não conheço os dias dela, a infância, a família. Faço uma ideia vaga da prosperidade do seu negócio. Vimo-nos sempre a propósito de transacções, que, para ela, creio terem sido insignificantes. E, desculpe-me a dureza com que lhe vou confessar isto: Não me lembro da cor dos seus olhos. E nem disso me sinto culpado. Simplesmente porque não os levantou nunca frontalmente para mim, mais preocupada com as tabelas que tinha à sua frente do que comigo ou a empresa que eu represento. Como pode ter a certeza que é comigo que cruzou a lagarta? E entusiasmado com a perspectiva que se abria, continuei. Sim, tem a certeza que é a minha cara que vê com a sua lagarta?
Fez-se um longo silêncio do outro lado da linha. E depois ouvi a voz dela, como se tivesse revistado a memória e tivesse saído de lá magoada: é a única cara que recordo nos últimos seis meses.

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