22 julho 2004

O homem subterrâneo de Dostoievsky não é nada

O homem subterrâneo de Dostoievsky não é nada: “...nem rancoroso nem bondoso, nem um traste nem um homem de bem, nem um herói nem um insecto.” Raskolnikov já é qualquer coisa. O livro de Coetzee* acaba com Petersburgo a arder. Os fogos são na outra margem, na zona dos estudantes e da Universidade, das caves labirínticas onde uma multidão dantesca tosse, vende o corpo, fede e prepara a Revolução. Quando a Revolução triunfou não foi Raskolnikov quem tomou o poder mas o seu sucedâneo nietzschniano. Ou o Nachaev de O Mestre, pronto a matar, o vingador do povo, mais que niilista, sensualista. Entretanto, no resto da Europa, o homem subterrâneo sofria com êxito a sua mutação e metamorfoseava-se em insecto e como insecto era arrastado para o lixo. Se sobrevivia era alistado nos grandes exércitos que se combateram sem tréguas. Homens sem qualidades ao mando de super-heróis, nas mesas de circunscrição, nas fábricas de armamento, nos batalhões que semearam a ordem nova através da arma poderosa dos seus ancestrais humanos, essa ordem secretamente inscrita no núcleo das suas células e que os mandava violar e eliminar.

A Rússia nachaevista não conseguiu, felizmente, construir o homem novo. Mas conseguiu destruir os que nas caves e nas mansardas da Rússia czarista escreviam como Fiodór Dostoievsky. Da Rússia que vai de Putin ao mecenas do Chelsea vem hoje um enorme silêncio. Ou talvez os herdeiros de Raskolnikov sejam os terroristas da Tchetenia e nós não sejamos capazes de perceber.


*J.M. Coetzee, O Mestre de Petersburgo, D. Quixote

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