03 outubro 2004

O pequeno-almoço de Loreta


Quando me estava a vestir, naquele quarto de Hotel da cidade de L., via o Mamute adormecido sem distinguir os traços da sua cara. Psique, pensei. Saí do quarto com ele adormecido, sem me lavar. Por nenhum motivo romântico. Quando leio essas mulheres que ainda o sentem dentro delas, inundadas de prazer, sei que escrevem um guião masculino. Eu simplesmente prefiro lavar-me em casa. Ou no meu quarto, naquele caso. Não olhei a face do Mamute adormecido. Apesar de ser quase dia, de haver alguma luz no quarto, de o poder surpreender no sono. Estava contente comigo. Tinha-me saído bem daquela noite americana. Não me via como Esquilo nem como Castor, afinal uma virago essa Castor. Tinha dormido, toda a noite, com um homem amável, que não se apressara, se esforçara por me dar, porque não hei-de escrever esta palavra antiga?, volúpia.
Atravessava-me um pensamento. Intermitente. Como uma música discreta, hesitante. Que ganhava coragem. Tocava na minha cabeça quando entrei no meu quarto, no chuveiro, ao vestir-me e no pequeno almoço em que escrevi parte destas notas. Talvez o Mamute seja o homem que me vai carregar. Não o ter olhado, não me ter logo lavado dele, vai permitir que a volúpia permaneça.Afinal aproveitava-se alguma coisa do guião. A cara dele será para sempre as caras dos rapazes com quem dormi, ou não dormi mas desejei. E um dia as caras fundir-se-ão na cara real do Mamute e poderei fitá-lo sem medo de me afastar desta calma.
A avó Aurora dizia : Antes um burro que me carregue que um cavalo que me derrube. E apesar do desmentido risonho da minha mãe eu imaginava que ela tivera, em nova, um grande desgosto de amor e se tinha afeiçoado ao meu avô, plácido, complacente para com a ditadura, gerindo a empresa da família com solidez desprovida de brilho. Agora era a minha vez. Ainda tinha na memória dos sms a resposta do meu namorado. A resposta certa. Pode-se perder mesmo tendo dado a resposta certa. Ele tinha respondido à mulher que eu era muito tempo antes. A madeleine desfazia-se-me na língua e sabia que a segunda metade da vida estava a acabar.

sent by//Loreta Granada

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