16 novembro 2004

Pedalando no dique

Estava um dia assim na cidade de A . Procurava a paz na natureza, bendita prescrição. Vinha do Norte um ar limpo e eu ia de bicicleta pelas ruas de Oods. Perto de uma escola encontrei três miúdos, de quinze anos, disseram. Parei e eles mostraram-se surpreendidos mas colaborantes. Eram holandeses muçulmanos. Queria saber o que pensavam da morte, quero dizer, do esfaqueamento, agressão a tiro e decapitação de van Gogh. Van Gogh? , riram-se. Não sabíamos que o tipo ainda estava vivo. E depois mais a sério: Há um milhão de muçulmanos na Holanda, sabe? Quem se mete com um milhão de pessoas arrisca-se a que um deles se exceda.

Os miúdos continuaram no caminho para a escola pública holandesa e eu no meu passeio. Vinha atrás de mim um grupo de ciclistas. Quantos eram? Não me virava e não tinha reflector. Mas sentia o zumbido da sua perseguição. Também eu me tenho metido com gente a mais. Talvez alguns leiam. Talvez alguém leia por eles. O matador não lê, executa ordens. Leram os Versículos Satânicos os ayatholas que assinaram a fatya contra Rushdie. Os juízes do Santo Tribunal que empurraram Bruno às chamas de Campo di Fiori, esses ao menos, sabiam que o mundo é infinito e sem centro. O obscuro imã da garagem holandesa onde a execução de Theo van Gogh foi assinada viu o corpo das mulheres onde o Islão escreve a sangue a sua lei.

Assim ia pensando quando já fora da cidade de A . pedalava pela margem elevada de um polder. As sombras dos meus perseguidores alongavam-se nas terras ensopadas. E continuava a pensar em quantos ofendi, uns sem o saber, outros com premeditação e contumácia. Faltei a todos os encontros. Esqueci-me das senhas. Não identifiquei o inimigo principal e confraternizei com os inimigos secundários. O bichinho da dúvida toldou-me as certezas. Chorei na morte dos ditadores, esquecido das vítimas. Aplaudi por equivoco. Não ouvi um amigo que chamava baixinho. Nunca soube como respirava quem ao meu lado dormia docemente. Não dei agasalho aos filhos nestes Invernos e foi quase sempre Inverno. Esqueci-me de perguntar ao meu pai a terra que queria por sepultura. Não sorri como devia à florista. Quis ser muitos e deixei-me ao desamparo.

Quero ver os meus perseguidores de frente. Má sorte vir acabar nos Países Baixos. Outro que me enganou assegurara que era aqui tudo calma, luxo e volúpia. Vejo-os aproximarem-se. O senhor careca que um dia me meteu na mala do Mercedes, o namorado distante de Loreta, o patrão da rapariga que talvez seja Florista. Vai começar o festim. Quem se mete com tanta gente arrisca-se, ou como disse o juiz à mulher violada, estavas a pedi-las.

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