No Diário Ateísta
Eu estava a trabalhar numa editora. Fazia de tudo. Leitura de originais, pesquisa de financiamentos, revisão de provas, contactos com a tipografia, press release, direitos de autor, pós-produção. Trabalhava até tarde, num primeiro andar alugado da rua Cesário Verde. Uma noite em que saía para procurar uma bebida dei com um envelope debaixo da porta. Tinha um texto que não tive tempo para ler, mas que me pareceu incompleto. Assinava uma tal Daisy que não fazia parte dos meus conhecimentos e pedia:- Por favor não publique. Em breve voltarei a procurá-lo. E assim foi. Quase todas as noites, Daisy deixava um envelope. Eram pequenos poemas em prosa de uma escrita que não me impressionou. Aliás tive aquela sensação desagradável que se tratava de alguém que tinha por mim um interesse não literário. Uma vez ela deixou escrito:-Foram os seus textos que me motivaram. Os meus textos? Que podia ela saber dos meus textos? Eu escrevia uns artigos no jornal O Diário Ateísta, uma folha que devia circular apenas entre os dezassete membros da Associação e o Arquivo da polícia Episcopal. Não sabia nada de mulheres, mas até um homem como eu podia perceber que Daisy não existia ou era alguém que podia levantar problemas. Praticamente só houvera uma mulher na minha vida: Teresinha. Adorava-a. Comprava-lhe queijadas ao sábado, quando me pagavam. Mas ela não apreciava. Beijava-a no pescoço, porque os seus lábios me fugiam. -Você está doente, Teresinha? perguntava. E ela: - Estou-me sentindo estranha. A escrita de Daisy era a de alguém que está-se sentindo estranha e gosta. E terminava sempre com o mesmo apelo. Quando os envelopes ocupavam já a minha secretária decidi-me a ler o que Daisy escrevia. Mas era tarde, tinha bebido demais e adormeci.
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