Conceição Matos
Jannis Kounellis
...Mas eles Conceição vão/ lamber as botas/ comer à mão/ do novo Pina Manique/ com outra lábia/ com o mesmo tique.
Era uma canção de Zeca Afonso no marcelismo. Os que a cantaram não sabiam que Conceição era Conceição Matos, hoje recordada por uma entrevista e uma notável crónica de tortura, assinada pela jornalista Maria José Oliveira. Se todo o desrespeito pelos direitos humanos é detestável a violência organizada do Estado é a mais insuportável, sobretudo quando se faz de forma encoberta, no segredo das esquadras, nos calaboços, sem outro registo que o corpo das vítimas e aquele lugar interior onde as feridas não se apagam. A violência da PIDE/DGS tinha a cumplicidade do medo e do silêncio do país que fomos. Havia juízes e magistrados, professores de Direito, de Ética e de Filosofia nas Faculdades, padres e bispos nas igrejas de Portugal. Vigorava em quase toda a Europa a carta de cidadania que os vencedores da segunda guerra tinham declarado e sopravam ventos novos de Berkeley, Berlin e Paris. Mas aqui, nos dias de tortura de Conceição, e nos dias e anos que se seguiram, pesava como chumbo o silêncio e o medo. Conceição Matos tinha duas fés. Perdeu uma às mãos dos seus verdugos. A outra, quero crer que a mantém. Apesar de provavelmente à mesma hora, em cárceres que nunca foram nomeados, gente anónima ser violentada por verdugos tão repelentes como os esbirros de Caetano. Seja como for, a coragem individual de Conceição Matos é um património da nossa dignidade, da história do outro país que também somos.
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