07 março 2005

Laura


Gerhard Richter

Conheci em tempos uma mulher estranha a que chamarei Laura porque não me recordo de ter alguma vez conhecido uma mulher chamada Laura. Conhecer é a palavra menos apropriada para descrever o que me aconteceu. Estava numa bilheteira de cinema e a senhora que vendia os bilhetes desmaiou. Uma equipa de reanimação levou-a para lugar mais reservado e alguns minutos depois colocaram um letreiro que dizia: A bilheteira reabre dentro de quinze minutos. Voltei-me para trás e vi-a. Vi-a distintamente, como vejo as pessoas e as coisas à minha volta, sobretudo se são fora do comum, pela beleza, o exotismo, o brilho, ou outro sinal notório que Laura seguramente possuía. Laura, mas eu não sabia que ela se chamava Laura, e ela, como já revelei, não se chama assim, disse-me: - Já que temos de passar 15 minutos aqui podemos falar. E falámos, de todos os filmes em exibição, dos que já tínhamos visto e dos que tencionávamos ver. Sempre que me virava para a frente, para as costas do senhor de idade e para o aviso, ao fundo, que continuava a remeter para quinze minutos depois a reabertura da bilheteira, sucedia um fenómeno curioso. Esquecia-me da cara dela. Eu sabia que ela era interessante por aquela euforia que nos envolve sempre que conversamos com alguém interessante. Mas tinha de me voltar para recertificar coisas básicas: a cor dos olhos, a espessura dos lábios,o jeito dos cabelos, a altura das mamas. Esta perda de materialidade com a saída do campo visual, não me parecia relacionada com qualquer perturbação da minha memória recente, visto não abranger outros aspectos, tais como o conteúdo da nossa conversa. Era imanente à imagem dela. Despedimo-nos antes que o filme começasse, e eu agradeci ela ter dito:- Não somos obrigados a ver o filme juntos. De facto temia que confundisse a minha perturbação, que dizia respeito apenas à sua evanescência, com outro sentimento. Além disso acho insuportável ver filmes juntos. Já chega estarmos atentos à multiplicidade de sentimentos que o cinema em nós desperta. Ter ainda que vigiar o banco ao lado é algo a que nunca me acostumarei. Alguns meses depois encontrei-a no metro. Ela soltou um olá jovial e eu pensei que fosse a nova namorada do meu irmão, a minha dentista ou uma rapariga que me convenceu a mudar de operador de telemóvel. Era a Laura. Lembrava-me do nome, claro. E do filme.- Mas mudaste de corte de cabelo. Ou estás mais magra. Que não. Nem uma coisa nem outra. Aliás usara sempre o cabelo assim e tinha rigorosamente o mesmo peso. Lembro-me do que falámos. Olhava fascinado para ela à procura de um traço distintivo que me permitisse um reconhecimento posterior. Tive pena de ela não ser um quadro, para poder sacar do meu caderno de bolso e, com tempo, escrever a linha do nariz, a cor secreta dos olhos, a curva do pescoço, o alinhamento dos dentes, a projecção dos malares. Quando se despediu só conseguia lembrar-me da roupa. Escrevi no caderno, e é tudo o que guardo dela: Laura, O último Metro, casual chic. Laura não é o nome dessa mulher de quem nunca fixei um sinal. O último Metro devia ser o filme em que a funcionária da bilheteira desmaiou, foi há tanto tempo. Casual chic, o estilo. A terceira vez que encontrei Laura fui viver com ela. No escritório acabava os dias a tremer por não conseguir lembrar-me da mulher com quem ia ter, ao fim da tarde. Quando se cansou de mim, eu dela nem as mãos tinha aprendido. Nunca sonhei com ela, a menos que seja Laura a mulher cuja face, nos sonhos, não distingo.

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