01 abril 2005

A Lição de Coetzee

Nos anos sessenta, o jovem narrador Coetzeeano estava em Londres, vindo da Cidade do Cabo. Tinha vinte anos, vivia num quarto de uma rua sem qualidade, trabalhava para a IBM e continuava a sua pesquisa académica e a sua procura pessoal. Ele tinha abandonado a África do Sul um dia em que viu, saído não se sabe de onde, um exército de negros em armas gritando:
- Os brancos ao mar, os brancos fora de África. Em Londres ele esperava escrever poesia e encontrar uma mulher. As duas coisas por que ele esperava podiam estar associadas. A mulher por quem esperava devia reconhecer, na profundidade de si próprio, o poeta que duvidava ser, e amá-lo por isso, pelo reflexo do seu âmago indeciso nas águas turvas da superfície. Os encontros eram decepcionantes. O jovem narrador Coetzeeano era provavelmente uma pessoa horrível, não se apaixonava, as mulheres fascinavam-no mas ele não as apreciava. Quando pensou que era homossexual achou o sexo com um homem uma covardia, um arremedo. Mas não desistiu. Em nome do seu desígnio obscuro e da lição de Baudelaire e de Rimbaud, de Pound e de Eliot, cortou com a família e com a pátria. Recusou empregos. Passou privações. Ele sabia que não podia comprar casa a prestações, aceitar emprego estável nem responsabilidades a médio prazo. Talvez a profundidade do narrador Coetzeeano fosse apenas aquela predestinação cega, talvez aquela angústia diversa da de Antonioni da de Bergmann,ou do Angst centro-europeu, não fosse coisa que uma mulher pudesse amar. Talvez a poesia tivesse morrido no seu peito. Que importa. Podemos hoje sangrar da sua escrita.

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