02 maio 2005

Lúcia e o sexo



Hoje Lúcia não ligou. Talvez já tenha acontecido desde que se conheceram na formação, em Viseu. Mas ele preocupou-se. Passou a tarde distraído com o expediente. Não estava bem. Quando a Loja ficou vazia mandou-lhe um mail. Ela não respondeu. Telefonou para a Estação de Nelas. Uma imprudência. Há agora um chefe novo que sabe que até ao fim do ano os CTT emagrecerão mais cinquenta por cento e exerce um controlo policial sobre os funcionários. Ele não sabe se as chamadas fora das horas de serviço serão anotadas e lhe será pedida justificação. Na última avaliação já foi questionado sobre pequenas coisas como esta, ainda só como leve insinuação, discreta ameaça. Seja como for ninguém atendeu. Ouvia o telefone e via o largo da Estação dos CTT de Nelas, o monumento ao Escanção, os plátanos, a barraca das farturas, alguns reformados ao sol do fim de tarde. Ela tem telemóvel. Das poucas vezes em que estiveram juntos atendeu várias vezes. Era sempre a mãe, a propósito de qualquer insignificância. Mas não lhe deu o número nem ele o pediu. Podia procurar na rede fixa, sabe o nome de família, a lista de Nelas tem doze páginas, não ia ser difícil. Mas o que quer ele de Lúcia para estar assim, o que lhe vai dizer se ela atender? A questão do sexo, pensa. Lúcia há-de querer sexo. Quando antes de voltar a casa ele sai dos Correios, encontra-se com um ou outro amigo. Comem requeijão, bebem cerveja, falam de tudo, ou ficam calados à espera que anoiteça. Mas estão simplesmente a comer, a beber e a falar. Não estão suspensos pelo sexo. O sexo não se lhes atravessa nos silêncios, não têm que perceber pelas mãos, os joelhos, os olhos, se o que estão a dizer é só uma coisa sem importância, antes do sexo. Ele não gosta da premência do sexo. Uma vez passeou com Lúcia em Viseu e ela levou-o ao Palácio do Gelo. Ficou a vê-la patinar. Ela vestiu um fato justo e reparou-lhe na leveza, nas pernas magras, na cinta. Quando se aproximou vinha suada, pousou as mãos na balaustrada da pista e beijou-o. Depois, no regresso, apoiou-se no braço dele. Mas ele tinha de voltar naquele dia, não sabia como se faziam as coisas, tinha lido sobre as pensões em que se não dorme, talvez houvesse pensões assim nas ruas que em Viseu partem do Rossio para o recinto da Feira. Tudo isso era tão impossível para ele como calçar uns patins, dançar um tango ou concorrer a uma chefia. Quando se despediram em Nelas ficou a vê-la entrar em casa tentando sentir mais que uma vontade enorme de voltar à Estrada da Beira, à sua cidade. Talvez seja melhor assim. Ela desaparecer da sua vida. Há tempos leu A Juventude de Coetzee. Coetzee estava em Londres e uma tarde deixou-se levar por um homem. “Mal se falam. Deixa que o homem lhe toque por cima da roupa; não dá nada em troca. Se o homem tem um orgasmo é muito discretamente. Depois sai e volta para casa. Parece não haver nada em jogo. Nada a perder, mas nada a ganhar também. Um jogo para pessoas que têm medo das coisas a valer. Um jogo para perdedores.
Precisava que Lúcia o levasse assim. Depois pudesse sair e voltar para casa.

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