Este país te mata
Ele chegou tarde a casa. Disse-lhe:
- Estes gajos são todos iguais. Viste o ministro das Finanças? Pede contenção mas goza vencimentos múltiplos.
- É tudo estritamente legal, respondeu ela.
- Pode ser legal, foram sempre eles que fizeram as leis.
- Mas estão agora a corrigi-las.
- A corrigi-las? Tu acreditas nisso? Acreditas…
- Acredito que é tempo de fazer qualquer coisa e que eles vão fazê-lo, interrompeu ela num tom calmo mas onde algum confronto era perceptível.
- Então achas bem que eles acumulem reformas de privilégio e falem na abolição dos direitos sociais como se fossem privilégios da função pública?, insistiu ele.
- Não acho que os governantes tenham de ser pobrezinhos. Se podem acumular e isso é legal, que acumulem. O que me interessa são as suas políticas.
Ela estava determinada. Passou ao ataque:
- Tu pareces aqueles jornalistas que ganham mais do que o ministro e agora incendeiam o povinho com pacotes ridículos de indignação populista.
Ele estava cada vez mais espantado:
- Tinhas suma bolsazeca de investigação. Perdeste-a mal conseguiste esse emprego. (Não disse ranhoso. Parou à beira de dizer ranhoso.) E agora achas bem que acumulem o que quiserem. Com o teu dinheiro de contribuinte.
Ela não se deixou comover pela invocação do seu caso pessoal:
- Perdi a bolsa e não pude acumular. Mas eu não quero ser ministra. Não tenho capacidades, não quero responsabilidades, odiava ver a minha vida devassada e ser alvo da inveja dos medíocres.
Ele foi-se deitar sozinho e amuado. Pensava que era aquilo o estado de graça. Lambem as mãos dos senhores. Sempre foi assim. Ao mesmo tempo algo nela o comovia. Aquela vontade de acreditar nos dirigentes. Antes de adormecer percebeu que se ela, e milhões como ela, deixassem de acreditar, o país seria uma coisa terrível, tomado pelos descrentes de tudo, uma mistura de radicais, cépticos, gente que parece sempre a um passo da acção directa contra a câmara de televisão, já que o Bush está longe e é forte de mais. Os broxistas, sobretudo os broxistas legitimados pelo seu passado de coerência subsidiária, os broxistas intelectuais que sabem usar o léxico e a memória da esquerda, são, afinal, úteis à coesão social. Pensou qualquer coisa assim antes de adormecer.
De manhã teve finalmente tempo de ler o jornal da véspera e o editorial.
Porra, tinha dormido com o José Manuel Fernandes. Felizmente fora sem sexo.
- Estes gajos são todos iguais. Viste o ministro das Finanças? Pede contenção mas goza vencimentos múltiplos.
- É tudo estritamente legal, respondeu ela.
- Pode ser legal, foram sempre eles que fizeram as leis.
- Mas estão agora a corrigi-las.
- A corrigi-las? Tu acreditas nisso? Acreditas…
- Acredito que é tempo de fazer qualquer coisa e que eles vão fazê-lo, interrompeu ela num tom calmo mas onde algum confronto era perceptível.
- Então achas bem que eles acumulem reformas de privilégio e falem na abolição dos direitos sociais como se fossem privilégios da função pública?, insistiu ele.
- Não acho que os governantes tenham de ser pobrezinhos. Se podem acumular e isso é legal, que acumulem. O que me interessa são as suas políticas.
Ela estava determinada. Passou ao ataque:
- Tu pareces aqueles jornalistas que ganham mais do que o ministro e agora incendeiam o povinho com pacotes ridículos de indignação populista.
Ele estava cada vez mais espantado:
- Tinhas suma bolsazeca de investigação. Perdeste-a mal conseguiste esse emprego. (Não disse ranhoso. Parou à beira de dizer ranhoso.) E agora achas bem que acumulem o que quiserem. Com o teu dinheiro de contribuinte.
Ela não se deixou comover pela invocação do seu caso pessoal:
- Perdi a bolsa e não pude acumular. Mas eu não quero ser ministra. Não tenho capacidades, não quero responsabilidades, odiava ver a minha vida devassada e ser alvo da inveja dos medíocres.
Ele foi-se deitar sozinho e amuado. Pensava que era aquilo o estado de graça. Lambem as mãos dos senhores. Sempre foi assim. Ao mesmo tempo algo nela o comovia. Aquela vontade de acreditar nos dirigentes. Antes de adormecer percebeu que se ela, e milhões como ela, deixassem de acreditar, o país seria uma coisa terrível, tomado pelos descrentes de tudo, uma mistura de radicais, cépticos, gente que parece sempre a um passo da acção directa contra a câmara de televisão, já que o Bush está longe e é forte de mais. Os broxistas, sobretudo os broxistas legitimados pelo seu passado de coerência subsidiária, os broxistas intelectuais que sabem usar o léxico e a memória da esquerda, são, afinal, úteis à coesão social. Pensou qualquer coisa assim antes de adormecer.
De manhã teve finalmente tempo de ler o jornal da véspera e o editorial.
Porra, tinha dormido com o José Manuel Fernandes. Felizmente fora sem sexo.
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