29 julho 2005

Strasbourg


Quando Lúcia partiu era difícil trabalhar na estação. Sobretudo nos dias em que ela costumava telefonar e à sexta-feira, por causa do fim-de-semana. Esperava sempre que ela me convidasse no fim-de-semana. Quase nunca aconteceu mas não importa. Era assim que passava a semana e acordava à sexta-feira. Nessa expectativa. O tempo passava depressa e parecia-me que tinha todo o tempo do mundo para resolver a questão que havia entre mim e Lúcia. Às vezes pensava na minha vida. A minha vida verdadeira estava para vir. A vida que vivia era um prelúdio. A continuação do secundário. Uma coisa que acontece sem nos preocuparmos a não ser com a inscrição e a assiduidade mínima. Eu assistia à minha vida mas não estava bem lá. Fazia o que devia ser feito. Os cursos de promoção, os relatórios periódicos, a definição de objectivos para a avaliação. Picava o ponto, dava horas se fosse caso disso, substituía os colegas em apuros. À tarde um ou outro amigo esperava por mim no café. Nunca lhes falei de Lúcia. Mas sentia relativamente a eles uma grande superioridade. Eles viviam uma vida simples, reles. Como a minha parecia antes de conhecer Lúcia e perceber. Um dia tudo iria mudar. Numa terra que não conseguia imaginar, um homem como eu, mas intensamente mais vivo, mais cheio de energia e decisão, trabalharia com as mãos, sem outro salário que o olhar benévolo de Lúcia. Bastava-me esperar. Esse tempo viria. Não via sinais dele. Mas era cego e só à luz desse tempo os meus olhos se abririam. Os fins-de-semana passavam lentos. Às vezes duvidava que Lúcia existisse. Que tivesse tocado a cara dela com a ponta dos meus dedos, que tivesse tido coragem para lhe pegar na mão e no cheiro. Em Nelas. Mas eram raros esses tempos de descrença. As noites sempre me traziam um sonho, que de manhã podia ter perdido mas de que persistia, como uma certeza no peito, a doçura da minha próxima e verdadeira vida.
Quando Lúcia partiu, foi na minha vida futura que morri. Na estação já não se ia para lado nenhum, nenhum telefone que tocasse seria o dela. Nem sexta-feira precedia outra coisa que o fim-de-semana. E no café, à cerveja, era um rapaz como os outros.
Não deixava de escrever. Se não escrevesse tinha de beber. Antes escrever. Em papéis de deitar fora, porque em nada do que escrevia se dizia o nome dela, a forma de andar, o corpo magro, as costas, a graça do cabelo sobre a nuca. Houve dias em que enlouqueci. Só me lembrava dela afastando-se, caminhando de costas sem se voltar. Não me lembrava dos olhos, nem dos lábios, nem da claridade. Então vagueava nos lugares da minha cidade, onde ela não estivera, e se por acaso encontrava alguém que não fugisse perguntava-lhe: - És daqui? O que fazes? Como te chamas? E procurava segui-la até casa com a esperança de voltar a essa rua e ela me dizer: - Vê bem a minha cara. Foi para aqui que vim. Este é o prémio por teres esperado. Toma a minha cara de frente, vê-a bem. Não te esqueças dela. É a cara que levarei para a tua vida verdadeira.
Escrevia. Quando não escrevia, sentia que atraiçoava Lúcia. Escrevia primeiro nos cadernos de sempre, depois num portátil infelizmente sem grande autonomia, que me trouxe mais fluência, mais balanço, mais mancha no ecrã e copy past.
Depois começaram-me a morrer os substantivos. Começou pela morte dos substantivos comuns, seguiu-se a dos substantivos verdadeiros. E com eles morria quase tudo.

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