02 julho 2005

A um blog que começa (litania)



Presta atenção às palavras ou elas desenterrarão os mortos. As palavras circulam como vírus à procura de bocas, orelhas, pequenas fissuras na textura da pele e das mucosas, a tela que ofereces ao mundo. As palavras que foram ditas pela boca das mulheres a morrer nos trabalho do parto, da terra, da criação. As palavras das legiões de homens silenciosos nos barcos negreiros, as palavras dos caçadores recolhidos nas grutas antes da passagem da manada, as palavras do velho, ferido, que é deixado para trás, as palavras do pastor na transumância, as palavras que a actriz diz no camarim, as palavras da confissão extraída sob tortura, as palavras do verdugo ao ouvido da vítima. As palavras que não tivemos tempo de dizer aos que nos deixaram , as palavras sem sentido que Agustina atribui aos verdadeiros poetas, a palavra clara da mãe ao despertar, as palavras que escorrem da garganta das mulheres embrulhadas no prazer, as palavras que faltam à consolação, as palavras que os altifalantes sussurram nos aeroportos , as palavras de César ao ser apunhalado, as palavras doa que arderam nas fogueiras, a palavra que Ana não ouviu a Buhkarine quando o tiro lhe atravessou a nuca, as palavras que os padres dizem aos moribundos, as palavras com que as mães consolam as crianças, as palavras que o rei Sebastião ouviu a Camões, as palavras com que Borges descreveu o Aleph, as palavras com que Sherazade segurou a vida, as palavras que davam acesso a Tebas, as palavras que as hostes dos anjos se esforçam por ouvir, as palavras senhas usadas no castelo de fronteira por onde, um dia, os Tártaros hão-de vir, as palavras com que começas um blog, tão justas, tão perfeitas que tens medo que outras assim não voltes a encontrar.

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