As cinzas de Heitor
Quando eu era Heitor acreditava nas leis da história. Não sabia quantas eram, nem onde estavam escritas. Nem talvez lhes chamasse assim. Mas acima das pessoas reais que conhecia gostava de umas que estavam para vir. Não custa nada a acreditar quando se está à espera de alguém. No eléctrico, quando via uma pessoa que parecia especial, tentava que os meus sentidos memorizassem aquele instante: não apenas ela, o corte de cabelo, o livro nas mãos, o modo como mexia a cabeça. Quase nunca via os olhos de frente. Era o tempo em que as mulheres não tinham ainda os olhos levantados. E tanto como a imagem dela eu queria a luz do dia, os cheiros da linha quatro, a campainha de aviso, os homens pendurados na plataforma que subiam e desciam em andamento com invejável perícia. Viria a mulher e o dia. E depois do dia viriam os homens novos, solidários, calorosos e proprietários colectivos dos meios de produção. Uma crença destas povoava a minha vida quando era Heitor. Não era difícil colar as raparigas que ia conhecendo com a heroína fatal do meu destino, nem a organização clandestina dos operários e camponeses com o agente investido pelas leis da história para a marcha triunfal. Heitor morreu aos poucos. Guardei-lhe as cinzas num sótão óbvio. Como falo destas coisas devo ter dito a alguém. Hoje de manhã passei por uma das casas onde vivi quando era Heitor. Não me lembrava do local exacto onde escondera as cinzas. É horrível, digo-vos, ter perdido as cinzas do que fomos.
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