07 agosto 2005

Fernandes lança Fat Man sobre Nagasaqui com a ajuda do companheiro Vasco



Às vezes penso que nunca mais vou escrever sobre a política. Que Sócrates e Vara, Santana e Guedes, o emperuado à espera de nova oportunidade, o lado esquerdo da bancada, são um problema vosso.
Mas há dias em que não se pode.
Eu sei que isto onde escrevo não é nada. Uma passagem para lado nenhum de alguns amigos que provavelmente pensam o mesmo.
Mas houve sempre demasiado silêncio neste mundo.
E escrever é refazer o mundo, fazer de conta, opor à força a resistência da reflexão.
Como a esquerda não pensa ou não tem onde, tem vergonha ou está de férias, os amigos da bomba atómica andam aí à solta. Ontem o Fernandes, hoje o Pulido Valente. Compreende-se o à vontade. Sessenta anos é muito ano. Sobretudo se não há sobreviventes. Ou se falam japonês.
Asseguro-vos: debaixo dos destroços de Hiroshima que as fotografias a sépia repetem, há corpos irreconhecíveis. São os corpos dos que tiveram a felicidade de morrer no primeiro minuto. Porque à medida que nos afastamos do epicentro, aumentam as penas de ter escapado.
O Japão era um país feudal, governado por uma oligarquia despótica e que dera provas de imensa ferocidade em todos os países ocupados. Okinawa tinha sido terrível. Mas o Japão estava sozinho quando na Europa já se tinha festejado a libertação. Hitler, Mussolini e os seus cúmplices mortos, em fuga, ou a branquearem os alinhamentos anteriores, sem iniciativa.
A arma atómica era uma coisa nova. Não se conheciam os efeitos, diz-se. Mas os cientistas que nela trabalharam- e que devem ser considerados criminosos de guerra, conjuntamente com os políticos e militares que deram a ordem da sua utilização - sabiam com que materiais trabalhavam. A radioactividade era conhecida, bem como a existência de efeitos a médio e longo prazo. O alvo e o ponto de deflagração das bombas foram escolhidos em função da maximização dos efeitos letais na população. Não apenas os objectivos eram civis como estava a ser utilizada uma arma sem paralelo nem correspondência histórica. Não que a história abunde de ética. Mas os fins não justificam os meios. E se sessenta anos não ensinaram nada aos nossos historiadores e líderes de opinião temos que tirar conclusões. Eles hoje não se opõem ao terrorismo islâmico por ser terrorista mas por ser islâmico. Fosse ele em favor dos sagrados objectivos do livre comércio e da democracia e seria justificado, pelos vistos. Os neo cons teorizaram assim quando propuseram a guerra preventiva. Os panfletos das escolas corânicas não devem dizer coisa muito diferente.
No fim da segunda guerra mundial o campo aliado lutava contra o Eixo e lutava entre si para assegurar posições no futuro. Os golpes que vibravam à Alemanha e ao Japão tinham sempre um segundo objectivo estratético. Os soviéticos entraram na Alemanha com a bandeira vermelha e na caminhada de Berlim não se distinguiram muito das hordas nazis no seu solo, uns anos antes. O bombardeamento de Dresden pela RAF foi um crime. Mas usavam as mesmas armas dos inimigos. No Japão, há sessenta anos cometeu-se a outra face do Holocausto. A incineração dos amarelos. Lamento ter mostrado as cinzas. Não é coisa que se faça. Estes debates devem ser limpos, como as acções de formação nas universidades americanas, para ex- esquerdistas convertidos ao escutismo.
Acontece que ter estado do lado vencedor não significa que deixe de se considerar a vida de Suzikura Aboe, uma rapariga de dezasseis anos que morreu no Hospital Central de Hiroshima (escolhido para o epicentro da deflagração), tão digna de apreço, tão barbaramente ceifada, como a de Anne Frank morta de exaustão e desgosto num campo perto de nós.

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