02 agosto 2005

A força imensa



Ele nunca soube bem interpretar os sentimentos. Ah não, todos os sentimentos. O medo, por exemplo. Uma coisa tão simples, tão elementar. Talvez sentisse medo em algumas situações. Mas eram simultaneamente as mais envolventes, as que recordaria mais. E nunca nenhum medo o tolheu. Gostava da professora de química. E da filha da professora de química. Alguém que lhe ensinasse a diferença entre esses gostos. Uma era da idade dele. Podiam andar. Outra era grande. Podia-a admirar. Admirar com ternura, ouviu dizer. Pôs então um nome àquilo. A ternura. A primeira vez que beijou uma rapariga foi num ginásio abandonado. Ela queria mais, ensinava caminhos à sua mão espantada. Aquilo era entusiasmante. Mas era menos que a ternura. Não era das mesmas regiões do peito. Talvez não fosse mesmo do peito. Havia que dar um nome àquilo. A rapariga disse-lhe que era o amor. Ele percebeu que devia, daí em diante, chamar amor ao desejo das mulheres. Mais tarde o amigo escritor havia de lhe dizer: “As mulheres querem ser amadas (eles não conheciam então nenhuma mulher, só meninas que tremeriam no caso improvável de serem chamadas de mulheres). As mulheres querem ouvir a declinação do amor”. Pensou que as mulheres eram seres com uma vida secreta a que só os poetas acediam. Era simultaneamente estranho, quase ridículo, difícil de acreditar. As mulheres, além de roupa interior, tinham essa particularidade inimaginável de quererem a todo o custo ser amadas.
Nunca diria amor a uma mulher. E foi fiel a essa determinação de juventude. Mas as mulheres que querem ser amadas ouvem amor em todo o lado. É perigoso estar por perto. São perigosos os gestos do amor. Tal como o estrangeiro que salta a divisória no metro de Londres merece ser abatido com sete tiros na cabeça, assim o homem deve ser reconhecido, que segura nas suas as mãos de uma mulher.

Até que conheceu Katherine F. Ela lia tão bem os seus sentimentos que chorou no primeiro dia em que se viram. Quando a questionou, surpreendido, ouviu-lhe dizer que era por perceber o que ele sentia. Foi tão surpreendente, encontrar alguém capaz de lhe nomear o sentir.
- Diz-me o que sinto. E ela disse: - Divertimento.
- E agora? - Angústia.
- E agora ? - Júbilo.
Até que um dia ela voltou a chorar quando ele a olhava fixamente nos lábios.
-E agora? E ela disse: – Amor.
Era o amor, a força imensa, que fazia com que olhasse dessa maneira. Como podia deixar de acreditar. Ia explodir, mesmo que disparassem à cabeça. Haveria um só morto. O homem estúpido que fora, agora só aquela capa castanha que no verão alguns bichos largam, quando se preparam para voar.

(Isadorita, foto de Mário Martins)

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