Cartão de eleitor
Antes de viajar tiro da mochila os livros que não irei ler, os cadernos com outros destinos que as notas de viagem, os lápis (E a afiadeira? Nunca encontro a afiadeira). Alivio a carteira dos cartões que não utilizo. Eleitor, utente do Serviço de Saúde, sócio das várias agremiações culturais e dos Bombeiros Voluntários, beneficiário dos serviços sociais da PT. Tiro as chaves de casa, da garagem, do correio, as chaves da repartição. Deito fora os analgésicos, os anti-histamínicos e os anti-depressivos que ultrapassaram o prazo de validade. Vejo com apreensão as contas por pagar e certifico-me de que os prazos não acabarão antes do regresso. Guardo tudo no lugar mais óbvio e mais seguro. Nas viagens não preciso de quase nada. Levo portátil e escrevo coisas de que me arrependo, íntimas mas de um outro. Geralmente dos pares com quem me sento nos cafés e nos bancos de jardim, trocando frases que não entendo. Dá-me um beijo, ou ainda estás amuada? Dou-te meio. Meio quê? Meio beijo. Mas eu contento-me com meio beijo teu, com meia boca tua. Fico a olhar aquela meia boca, a invejar o amor económico de um rapaz cujo nome não cheguei a ouvir. É indecente ouvir as conversas nos cafés, mesmo se se está em viagem, em terras onde ninguém diz bom-dia. Mais indecente é viver as vidas deles. Às vezes tenho de escrever. Já não uso cadernos. Para o tipo de coisas que quero registar chega a conta do restaurante, o verso do bilhete do museu. (E os lápis dos hotéis. Vivo na abundância de lápis e na falta angustiante de afiadeiras.) No regresso percebo que perdi todos os cartões. Os sítios seguros não eram tão óbvios afinal. Vou ter de pedir segundas vias. Pagar juros, mandar ligar a água, ir envergonhado ao Bonirre, que é metódico e tem as chaves de segurança, arrombar a caixa do correio. O cartão de eleitor não. Não voto mais. Pelo menos nas presidenciais.
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