22 setembro 2005

A dor vicariante

Numa das últimas Lancet (1), um psiquiatra canadiano escreve sobre a Dor vicariante em resposta aos desastres globais. Parece que somos capazes de estabelecer empatia com os nossos semelhante que foram vítimas do 11 de Setembro, do terror madrileno, do metro de Londres, do tsunami e do ciclone Katrina. Um sentimento de dor e perda, semelhante ao que sentimos com a perda de alguém próximo. Como este fenómeno, de participar de uma tragédia que não vivemos e não nos afectou pessoalmente, é recente, a sua fenomenologia não está ainda estudada. Mas parece que o facto de se tratar de uma desastre de grandes proporções, não antecipado, súbito, com muitos mortos e feridos, está associado a dor, ansiedade, medo, vulnerabilidade e perda da segurança. Um dos factores que possibilita esta resposta emocional complexa é a proximidade provocada pelos relatos jornalísticos, sobretudo televisivos. Após New Orleans, alguns comentadores escreveram que os jornalistas tinham feito bem o seu trabalho. Expuseram-se, correram riscos de vida, passaram sono e fome, escreveram ou captaram imagens ao lado das vítimas. Possibilitaram uma tomada de consciência nacional e depois mundial. Permitiram-nos que nos identificássemos com as vítimas. Aceleraram a intervenção do presidente, obrigaram-no a tomar medidas adequadas à dimensão do desastre. A reacção saudável da opinião pública fez demitir alguns dos incompetentes, mobilizar a resposta do Estado americano e da comunidade internacional. O montante das dádivas pessoais para as vítimas do tsunami, por exemplo, foi de cerca de 1,2 mil milhões de dólares ( em contraste com os 200 a 300 milhões de dólares que o mundo gasta anualmente para controlar a malária, doença que mata anualmente 1-2 milhões de pessoas). Aqueles que sentiram dor, sofrimento e luto pelas vítimas de New Orleans estavam a reagir adequadamente. Todos os grandes momentos da humanidade se deram assim. Quando sentimos os outros como parte de nós. Incharam-nos nos ossos as dores dos afogados, chorámos com as famílias separadas, cheirámos as águas putrefactas, as casa arrancadas ao chão. Quando sentirmos assim as mortes de SIDA, percebermos que 1% dos orçamentos militares chegariam para um plano eficaz de combate à SIDA nos países menos desenvolvidos ( 8000 mil mortes em 2004), seremos mais capazes de desarmar os exércitos e obrigar os nossos governos a executar políticas consequentes. Sem jornalistas, a destruição de New Orleans seria igual à do princípio do século vinte, ao massacre dos grandes lagos, à Shoah durante os anos da guerra.
Como somos todos diferentes há sempre quem se identifique com os que conseguiram fugir, porque perceberam melhor a informação, a receberam mais cedo, vivem em sítios mais altos, chegam mais depressa às vias de fuga, têm carros mais rápidos. E até há quem se identifique com Bush e Cheney, ou com o senhor que dava informações desactualizadas e conselhos impossíveis de seguir. Até há quem ache que se devia mostrar apenas a Natureza, ou a mulher desolada na casa sem tecto só porque era branca. Como se a mulher branca não fosse nossa. Nós preferimos a nossa doença, esta dor vicariante pós catástrofe e agradecemos aos jornalistas que nos permitiram estar lá.

(1)The Lancet, HM Chochinov, 28 Aug 2005, 366:697-8

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