A mala
Nesta viagem fui procurar Lúcia a Strasbourg. Estava em Milão a trabalhar num programa destinado a transformar as estações de Correios em pontos multimedia, tinha o fim-de-semana livre e telefonei-lhe. Ela atendeu e disse que sim. Anulava um programa com as amigas, a colega com quem partilhava a casa ia sair, eu podia lá ficar, se quisesse. Fui a uma agência. Havia voos directos para Strasbourg. Demoravam pouco mais de uma hora. Três horas e meia de comboio. Era rápido de mais para mim. Comprei um bilhete de autocarro para Zeebrook com escala em Strasbourg. Viajei de noite. Não consegui dormir. Em Menton entrou uma japonesa com uma criança muito pequena ao colo. Só falava japonês, tinha o nome do destino escrito numa folha de papel. Mostrou-mo. Disse-lhe que sim várias vezes e baixei a cabeça. Sim, percebo o que quer, sim, conheço essa cidade, sim, aviso-a quando chegarmos. Pouco tempo depois a criança adormeceu. A cabeça da criança veio pousar-me no braço e a mãe não a retirou, o que interpretei como um sinal de grande confiança. Quando a imobilidade se tornou insuportável, improvisei uma almofada com um blusão e retirei o meu braço devagar, ao mesmo tempo que tocava levemente na cabeça da criança e olhava com ar de agradecimento para a mulher. Ela nunca devolvia o olhar, mas não me preocupava porque lera na Amélie Nothomb que as mulheres japoneses não olham nos olhos. De cada vez que o autocarro parava ela tirava o papel da carteira, mostrava-mo com apreensão. Eu dizia-lhe que não e abanava a cabeça, tentava sossegá-la com um gesto, abanava a cabeça e depois voltava a fazer gestos que lhe queriam demonstrar um perfeito conhecimento do trajecto, das paragens intermédias e da minha competência para a avisar do seu destino. O autocarro tinha as luzes apagadas e avançava depressa demais para a minha expectativa. Imaginava-me como um peregrino. Uma peregrinação leva o seu tempo e deve ter um grau de dificuldade proporcional à fé e ao lugar de culto. Eu queria demorar a chegar a Strasbourg. E chegar cansado, para não sentir excessivamente. Tentava pensar muito em Lúcia. A noite de verão, a progressão silenciosa do autocarro, a tensão da mulher japonesa na cadeira do lado, a cabeça da criança encostada ao meu braço. Mas só conseguia pensar em coisas absurdas. Com quem se iria encontrar a mulher japonesa, que emprego teria, o que faria na Europa, sem conhecer uma só das línguas indo-europeias, quem lhes escreveu o nome da cidade do destino. Mas sobretudo pensava se a carteira Louis Vouitton era verdadeira ou de contrafacção. Uma vez em que me surpreendera pela venda de imitações que me pareciam perfeitas, num mercado de rua em Roma, perguntei a L., uma elegante com quem costumo viajar, como é que se distinguiam os originais. Pela classe, respondeu-me ela. Nunca percebi esses pormenores que fazem a diferença. Passei a olhar as carteiras à procura da classe das mulheres e a olhar as mulheres em busca da classe da carteira. Esta questão parece fútil. Mas foi Curling, um escritor muito sério, quem disse que o comunismo caiu não porque os homens quisessem usar fatos, mas porque queriam usar fatos Armani. Essa incapacidade em distinguir os discretos sinais da classe preocupou-me em diversas épocas da vida e seguramente na viagem de Milão a Zeebrook, com escala em Strasbourg, onde estava Lúcia. Não distinguir as ruivas, quando, ultrapassada a extrema juventude, são só mulheres sardentas. Não distinguir as louras da multidão de mulheres que descolora os cabelos. Não distinguir uma mulher que leu A Morte em Veneza de outra que só viu o filme. Não distinguir a que pratica a verdade da que tem falta de imaginação, a que precisa de ajuda da que veste a pele da inocência, a corajosa da destemida, a reservada da destituída de dotes. Se há mulheres com classe uma delas é Lúcia, disso estava seguro. Ainda me lembrava da forma como ela patinara em Viseu. É fácil patinar com classe em New York, com os arranha céus e a memória do cinema por detrás. Difícil mesmo é patinar no Palácio de gelo de Viseu, contra os patins de aluguer e as famílias que olham com o mesmo olhar que dedicaram às montras das lojas onde nunca entrarão e ao jogo de futebol com a sua equipa eternamente perdedora. Lúcia tinha classe, por isso me deixara, por isso me ia receber fingindo um contentamento que não podia sentir. Outra mulher que tinha classe era a japonesa. Apesar da quase obscuridade do autocarro, as luzes da estrada iluminavam-lhe a cara aos clarões e via-lhe a boca maquilhada em rouge absolu, o pulso fino, o queixo apontado para o alto, a parte de trás do pescoço, cuidadosamente a descoberto, realçada por uma gola que se abria atrás e se desdobrava como um estojo apresentando cuidadosamente a sua preciosidade.
A menina japonesa dorme sobre o meu blusão. Em que idade se começa a sonhar no Japão. Parece sorrir. As crianças japonesas têm, incrivelmente desenvolvidas, as marcas neoténicas que asseguram a protecção dos juvenis. Face arredondada, malares salientes, queixo doce. Está a meu cargo nesta noite, ela e o seu sono, pelas estradas que cruzam o centro da Europa em direcção aos barcos do Norte. Há-de sair no seu destino, numa paragem que assinalarei à mãe, antes de amanhecer e antes do rouge absolu lhe desmaiar nos lábios. Talvez esta seja, para a mulher japonesa e a sua filha, uma viajem única na vida. Como é que vou saber. Por enquanto é só uma palavra impressa numa folha de papel, uma carteira clara, e depois a estação dos autocarros de Strasbourg, sábado de manhã, numa cidade que ignora ser sede de peregrinação.
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