17 setembro 2005

Os mecanismos de defesa

recolho-me. mantenho-me imóvel, para sustentar o que dói.

A insónia não vibrava com a nitidez dos sinos, dos cristais mas era o lado esquerdo que tinha esmagado. Alguma parte do lado esquerdo não cabia no seu espaço anterior e era ela, ou os vizinhos, quem produzia aquele qualia extraordinário, intenso de tal modo que não podia acreditar que fosse continuar assim, tão súbito e ameaçador que não me tinha dado tempo para gritar. Na corte dos anjos também não me acreditavam. -São gases, disseram-me. Contam que frequentemente chegam às urgências dos hospitais infelizes, dobrados sobre o lado esquerdo, acreditando ter chegado a hora do seu coração, para depois serem desqualificados, às vezes sem exames complementares, e reenviadas para casa com o opróbrio de um diagnóstico das vísceras menores. Os gases não pesam. E a mim pesava-me um lugar recôndito do lado esquerdo, da intimidade do lado esquerdo. Não era excessivamente alto, embora parecesse transmitir-se para o coração e o mantivesse encolhido, a bater apenas o suficiente para poder continuar a existir, numa oscilação sistólica que o pulso não registava. Não era nas costas, embora nas costas, no lado esquerdo, junto à omoplata, fosse uma faca, ainda só pressão intolerável, como se a mão que a despediu se tivesse arrependido ao contacto com o osso da omoplata, ou sádica, quisesse que o qualia fosse apreciado longamente antes do alívio da penetração. Não era a dor de um apêndice que apodrece e rompe. O apêndice é do lado direito e o lado direito tinha-se apagado, como se para aquele combate chegasse a metade mais gasta do meu corpo. Aquilo que crescia devia sair, ou encontrar um corpo que não se revoltasse. O corpo é como um campo de batalha. O invasor encontra resistência e há imenso sofrimento enquanto a revolta persiste. Depois tudo se aquieta, quando uma nova ordem se instala. Quem era o invasor? Quem por mim, se obstinava a resistir? Em nome de quê? Eu tinha ouvido a advertência que Maria Gabriela Llansol deu, num diário de 1975, aos pobres de Lisboa: - Abandonai a ideia de justiça. Interessava-me lá o invasor. Talvez se me não mexesse, como os covardes nas guerras do passado, ele passasse ao lado. Mas já me tinha visto. Estava dentro de mim, talvez à procura de uma saída. Encarcerado entre um pilar do diafragma e os feixes altos do psoas. A dor resplandecente engolia a noite, hora a hora. Uma parte de mim ia escapar, e em lugar de me dedicar a ela ou de lhe dar o afecto que merecia por se portar tão bem, odiava-a pela complacência, pelo silêncio acomodado. Enquanto morria pelo lado esquerdo recriminava o lado que me sobrevivia.



Créditos: Calamity Spot; Carlos de Oliveira; Maria Gabriela Llansol ; dados de autópsia.

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