20 outubro 2005

Alma quando chega o dr. L.


O dr. L. estava em Londres e decidiu ir conhecer Lúcia a Strasbourg. Comprou um bilhete de autocarro. O ferry rumou de Dover até Zeebrugge com atraso devido à noite tormentosa. A manhã, no continente, clareou e Lúcia foi esperá-lo à estação de camionagem. Ele não a reconheceu. Nunca a tinha visto. Conhecia-a apenas das minhas descrições no café Império e de uma fotografia. Ela estava sentada na gare central de Strasbourg. Levava ténis vermelhos. Foi a primeira coisa que ele viu. Ténis vermelhos, calças verde água e um impermeável. A cara era oval quando sorria. E Lúcia sorria para o dr. L, nessa manhã, como sempre sorrira para mim. ” Lúcia tem os olhos rasgados, as maças do rosto salientes, o cabelo fino, os tornozelos estreitos. “, explicara eu ao dr.L. “E as mãos, como é que são as mãos?”, perguntou ele impaciente. “As mãos são magras , as unhas cortadas rente.” E quando anda baloiça o rabo, como se os jeans fossem largos e o baloiço segurasse a cinta. Isto não lhe disse. Ele que descobrisse, se Lúcia ainda tivesse aqueles jeans e conseguisse ver como ela andava.
Escrevo agora isto para não a esquecer. Que a conversa na esplanada deve ter sido mais rude, embora o dr. L. não use palavrões e eu tentasse descrever Lúcia com o entusiasmo de um guia turístico.
É aquilo que ele recorda dela. Os ténis, a ondulação da marcha, a fala clara. O dr. L. fora procurar o quê a Strasbourg. “ Vou em peregrinação, Heitor. Vê lá se compreendes. Um ano inteiro a ouvir a tua história e não me dás o direito de ficar a conhecer a mulher?” A ouvir e a sacar. A partir de certa altura o interesse do dr. L.pela minha história era impossível de esconder. Quase só aparecia nos dias em que Lúcia telefonava, sobretudo à sexta –feira. Ganhara confiança comigo. Tentava organizar-me programas de fim-de-semana, dava-me nomes de restaurantes e hotéis. Chegava, sentava-se e começava: “Heitor, vamos lá à nossa educação sentimental”. Acho que de certa forma ele merecia ver Lúcia. Quando Lúcia desapareceu, o dr. L. passou comigo uma tarde em silêncio, na esplanada do Império. De vez em quando suspirava, como se dissesse. “Que mulher. Que mulher.” E eu abanava a cabeça em comovida concordância.
Do encontro deles em Strasbourg sei pouco. Não havia muita gente na Gare, àquela hora da manhã de sábado, e ele acabou por reconhecê-la. Aproximou-se, mas não teve coragem para falar. Pareceu-lhe uma índia sul americana branca. Foi ela quem se lhe dirigiu: “Seriez vous l’ami de Heitor?”. “Lúcia?”, interrogou ele. “O meu nome é Alma”, respondeu ela.

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