Douglas no paraíso
O cavalinho a que agora, com autorização de um dos criadores, chamamos Douglas, foi ontem transportado para o seu pasto de Inverno. Aos que se interessam por estas pequenas coisas direi que quatro homens contratados junto ao rio, de trato fácil e poderosos torsos musculados, desembarcaram de um camião onde cabia Douglas e outros cem como ele caberiam, se os houvesse, que não há outro cavalinho como Douglas. Para os que não sabem, direi que sendo Douglas das ordens superiores dos animais, não só escutou um caracol sem nome, como com ele trocou sentimentos próximos da amizade. Quando os quatro homens pegaram em Douglas caíram-lhe as patas da frente, decepadas pela chuva e pela relva ensopada. O nível da secção fora a articulação do cotovelo. Os homens deram sinais de inesperada sensibilidade, enrolando panos nas feridas do cavalo e deslocando-o com cuidado, temendo que lhe caíssem mais pedaços e o frete deixasse de se realizar. O transporte fez-se no meio do trânsito intenso que a cidade apresenta aquela hora. Eu ia à frente, num carro preto sinalizando o caminho, com as quatro luzes a piscar. À medida que avançávamos ocorreu-me que aquele era de certa forma um cortejo fúnebre, e que percorria a cidade, lentamente. No início de Doctor Pasavento, Vila-Matas imagina que na estação de Atocha de Madrid compra um livro de que se falava muito nesses dias (…) e de que se dizia que estava mudando a história da literatura. O título do romance era Errava por Paris um carro fúnebre. É mais ou menos assim que Ana Sá Lopes inicia a sua crónica sobre as mulheres do Presidentes, publicada num jornal de domingo. Ela diz que nesse dia de 1910, errava por Lisboa um carro de morte. Ontem ao início da tarde errou nesta cidade um carro fúnebre, uma camioneta que parava em todos os cruzamentos como se não quisesse chegar ao seu destino, com quatro homens no banco da frente e um cavalo verde de patas decepadas. Alguma coisa isto há-de querer dizer, pensava eu. Mas quando largámos Douglas na sua nova morada apercebi-me de que estava vivo. Ele e eu estávamos vivos, cheios daquela estranha, absurda e contagiosa alegria de viver . O transporte ficou em quarenta e dois euros, mais oito de gratificação.
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