30 outubro 2005

A mudança da hora


W.H.Auden escreveu que a recensão de livros maus faz mal ao carácter e eu deveria falar aqui apenas das coisas boas que vi, ouvi ou fantasiei. Amina Lawal, a mulher que sobreviveu, na Nigéria, a uma pena de lapidação por adultério foi encontrada por uma jornalista espanhola do El País numa aldeia do norte da Nigéria. O encontro entre as duas mulheres, convenientemente autorizado e vigiado por homens, as declarações de Amina, onde toda a conformação à ideologia sexista e religiosa do actual islamismo não consegue esconder um murmúrio de revolta, a pose dela para a fotografia, o modo como volta a desaparecer, são discretamente transmitidos numa escrita crua, sem adjectivos.

Ou a entrevista da lindíssima Siri Hustvedt ao Mil Folhas, com fotos benditas, onde ela declara que quem em nós escreve é o inconsciente, algo que os leitores possuídos pela síndrome de Zuckerman há muito têm por verdade absoluta, e Ian McEwan declara ser um estado de libertação e concentração que os escritores partilham com os neurocirurgiões, mas estes só atingem no final da intervenção. Todas estas coisas boas têm para mim uma tonalidade ambígua, como se por detrás da boa nova houvesse uma maçã envenenada, para usar a linguagem do pecado.

A entrevista de Amina tem alusões incómodas à ajuda internacional e é decepcionante imaginar como a densa cumplicidade masculina consegue reduzir as mulheres ao papel de que Amina é símbolo. A alusão de Ian McEwan ao neurocirurgião, absolutamente lógica porque ele está a ser entrevistado a propósito de Sábado (traduzido e lançado em Portugal meia dúzia de meses antes de Espanha, sublinhe-se) também não contribui para me adoçar o carácter, desiludido que ando com um neurocirurgião. E a última experiência do dia de sábado foi tão negativa que o meu carácter não recuperará tão cedo. Estavam os quatro do Eixo do Mal reunidos na Sic notícias e eu à procura de um bocado de humor irreverente. Começaram a falar daquilo que chamam de gripe das aves. Completo desconhecimento, nenhum trabalho de casa, sobranceria, toda a informação das últimas semanas, alguma da qual rigorosa e de grande qualidade, ridicularizada, como ridicularizadas foram as questões de populares, reproduzidas para gáudio dos comentadores, quando eram pertinentes e os risos deles uma manifestação de preconceito e ignorância imperdoáveis. Daniel Oliveira deu a definição de pandemia que ouviu na mesa do café, Júdice disse que era tudo uma manobra das televisões para ganhar audiências. Manobra dos americanos, acrescentou a Clarinha, que citou um relatório do CDC, trocando-lhe o nome e o conteúdo. No meio da risota, que o moderador alimentava, Daniel Oliveira e Júdice introduziam alguns comentários caricatos que pretendiam dar consistência à derrisão. Algo positivo foi ter-se percebido a ligação das aves à gripe, disse, catedrático, Daniel Oliveira, quando qualquer pesquisa rápida lhe poderia ter mostrado que as aves, sobretudo as selvagens são tidas como o hospedeiro natural do vírus influenza desde antes da queda do Muro. Adormeci de mau carácter que só a suspensão da hora, essa brincadeira dos homens com o Tempo, redimiria. Viver duas vezes a mesma hora, e das duas vezes da mesma maneira é o supremo exercício da liberdade, mais que a criação literária. Porque esta provém duma zona de recalcamento a que não se acede sem castigo enquanto a ideia de viver e voltar a viver plenamente a mesma hora, como um feitiço do Dia das Toupeiras ao contrário, parece o símbolo mesmo daquilo que os homens e as mulheres podem fazer aos deuses sem os magoar.

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