15 outubro 2005

A questão de Heitor

A questão de Heitor, ou talvez lhe devêssemos chamar a questão de Lúcia, podia expressar-se assim: seremos nós almas fortes?
É horrível viver contra uma questão assim. Está sempre pendente, mesmo se não é enunciada. Há momentos em que desaparece. Quando ela patinou no palácio do gelo, por exemplo. Parecia concentrada naqueles movimentos, desenhando círculos, mudando subitamente de direcção, afastando-se e depois deslizando para a bancada onde ele aguardava, tonto e agradecido, como se lhe bastasse calçar uns patins para a poder acompanhar. E depois ainda na escada do prédio de Nelas, onde os corpos desataram a sua estranha sabedoria. Onde se aprendem os gestos da escada? Quem coreografa aqueles movimentos? Quem suspende o tempo e cria esse outro tempo, para outra respiração, outro bater do peito, outro sangue nas artérias. Só o granito do hall lembrava a questão. Serão eles almas fortes?
Mas não era altura para ouvir o granito.
Não se pode viver sempre nos pontos da alta concentração de neuromediadores nas redes neuronais dedicadas à glória. A questão de Lúcia é que não sabe, ou não se importa. A questão de Heitor é que, se não se pode sempre, é talvez melhor que não se possa nunca.

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