03 dezembro 2005

Preconceito

Há salas de embarque em que toda a gente parece regressar. Não há crianças e a vida está suspensa. O voo é de curta duração, como o primeiro-oficial não se cansará de dizer nas saudações de bordo. À entrada do voo estou cansado e não me parece que tenha comprimidos que alterem a minha visão, se não do mundo, pelo menos daquele aeroporto. De fosse mulher tinha pintado os lábios, apanhado o cabelo, abertos os botões da camisa. Mas os homens estão mais irremediavelmente ligados à carcaça. Penso isto enquanto passa um homem de cachecol cor-de-rosa. Por um preconceito estúpido para com o cor-de-rosa não tenho nenhum cachecol cor-de-rosa. Não tenho aliás nenhum cachecol, pelo que a falta de um cachecol cor de rosa só me assalta ao ver o homem na fila de embarque deste voo de curta duração, entre dois aeroportos da Europa central, de onde as crianças e a própria noção de viagem parecem ter sido banidas. Nunca vi um cachecol rosa no sector de roupa masculina. O preconceito reside exactamente nisto, em não se ver, em se considerar invisível o que não faz parte do horizonte das opções. O meu companheiro de viagem não considera provável apaixonar-se por uma mulher asiática. Isso não tem nada a ver com o facto de ser casado com uma mulher a quem de rajada fez três filhos e uma interminável licença de parto. Embora seja viajante e encontre mulheres asiáticas elegantes, nunca as viu, verdadeiramente. O meu preconceito relativamente aos cachecóis cor de rosas não se estende às camisas cor-de-rosa, nem às camisas de colarinho branco e corpo cor de rosa ou azul ou de pequenas riscas azuis. Relativamente a essas peças de vestuário declaro a minha repulsa baseada em experiência e razão. Os usuários são gente a evitar. As camisas compram-se com after shave da mesma marca, e gravatas, cinto, sapatos e relógio. São falsos sinais, como se diz na psicologia evolutiva. De desafogo económico, bem-estar e poder. Os destinatários são provavelmente mulheres jovens, mas não muito, desejosas de protecção e de estatuto social.
O meu companheiro de viagem duvida que a probabilidade de alguma vez se apaixonar por uma mulher asiática, mesmo numa das suas campanhas na Birmânia, tenha a ver com a minha cegueira para as peças de roupa masculina. Mas estamos de acordo no desprezo pelas camisas de colarinho branco e corpo colorido, sobretudo quando usadas por pessoas cujo nome é Artur.

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