03 janeiro 2006

Os Herdeiros


“Eu conheci o João nas aulas do primeiro ano do Liceu Camões. Durante dois anos eu fui o melhor aluno da turma mas a partir do terceiro ano o João ultrapassou-me.” Ele é o Eduardo Prado Coelho. O João, que passou a ser o melhor aluno a partir do terceiro ano, é o João Lobo Antunes. Esta confidência pode ler-se na crónica semanal que EPC assina no Mil-Folhas, a semana passada dedicada ao João, a propósito do livro Sobre a Mão e Outros Ensaios (Gradiva, 2005). A confidência de EPC não é uma novidade. Quem o lê sabe que ele era o melhor aluno de uma turma extraordinária do Liceu Camões, e que depois foi ultrapassado. Agora coube a vez ao João. Mas ia jurar que outras pessoas, noutras crónicas, todas dotadas de “inteligências poderosas”, ou de outras qualidades invulgares, todas felizmente célebres, o ultrapassaram ou pelo menos igualaram, nos quadros de honra da memória juvenil. Daí não vem nenhum mal ao mundo. Facilmente percebemos que EPC recuperou o lugar, dado que o João, médico, pertence a outro grupo de saberes, a outro ranking. E acreditamos sempre que os nossos amigos são campeões, embora o ar de EPC, de quem nunca levou porrada, seja levemente irritante. Mas o João merecia mais. A crónica não ultrapassa lugares-comuns: “ comecei a perceber aquilo que ele afirma num dos ensaios deste livro- a medicina tem de ser vista hoje numa perspectiva englobante”. “ É a realidade da nova ciência médica e da expressão holística que a modernidade forçou a adquirir que é, no fundo, o tema central deste volume.” Mais à frente EPC descobre outro centro: o Pai. E depois de algumas citações comoventes, surge como um lema uma afirmação, atribuída a Juvenal Esteves, que nem sequer é questionada: “o estofo moral da profissão seria garantido pelos médicos filhos de médicos.” Seguem-se mais dois parágrafos do mesmo estilo: “ Uma intervenção inteligente e ponderada sobre a guerra das ciências”, “o continente ético que sustenta a arquitectura do livro”, “ninguém é tão velho que não espere viver mais um ano”.
O livro de João Lobo Antunes terá decerto méritos que o texto de EPC não conseguiu por em destaque. Mas esta modernidade é inquietante: construída na sucessão dinástica, vendo-se a si própria, peremptória, como guardiã da moral. Mesmo que a moral seja a dos herdeiros, "discutindo a cilindrada dos carros, enquanto a sonda viaja pelo recto do paciente".

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