02 janeiro 2006

Pedro



Agora que o Círculo de Leitores está a editar a vida dos Reis de Portugal, leio D. Pedro V, de M. Filomena Mónica. E no prólogo, que geralmente não leio ou só leio no fim, vejo que diz, dirigindo-se agradecida ao convivente: “…teve de me ouvir falar, com uma intensidade que as pessoas normais apenas dedicam aos vivos, de um homem que nos dias pares lhe era oferecido como um santo e nos ímpares como um satanás.” E aprecio mais esta confissão de Mónica, por motivos que passo a explanar. Vivo rodeado de pessoas assim, a quem aprecio directamente e não através de documentos. Mas tenho, relativamente a quase todas, as mesmas dificuldades de apreciação. Há dias em que a dra. Filomena me parece bem interessante. Magra, nervosa, arguta. Outras em que não passa de anorética, agitada, excessivamente crítica. O Matos, ora o vejo como um diligente funcionário, tolerante, capaz de preencher os formulários dos clientes, ora como um Savonarola que dorme com a verdade. A rapariga que talvez seja florista já foi para mim um desses bolbos que nascem do calcáreo das serras. Hoje não é senão uma estrelícia, um gladíolo. O meu barbeiro já me aborreceu mortalmente com as suas opiniões, e, nos últimos meses, não há frase dele que não me pareça acertada. O empregado de balcão do Café Império, o vigário da Sé, o senhor vereador, o senhor director, o senhor professor doutor, a menina Emília, são, alternadamente, gente notável ou vulgar, cheios de qualidades ou de problemas, capazes de fazerem um país melhor ou doentes da acedia geral. Eu próprio, se por acaso de manhã, alguma superfície me reflecte, ou a voz me ecoa, posso-me achar desprezível, supérfluo, timorato.

Só Lúcia foi sempre uma alma forte. E à sua volta havia luz, alegria. E ia jurar que havia música. Mas foram tão breves os dias desse ano.

D. Pedro V, Maria Filomena Mónica, Círculo de Leitores, 2005

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