20 janeiro 2006

Quilómetro 148: Bissula




Naqueles anos eu trabalhava em Koper, uma cidade no estuário do rio J. Tal como acontecia com a maior parte dos professores e investigadores do Instituto Capodistri, residia em Porec, uma pequena cidade do litoral ístrio, insuportável no Verão, mas encantadora a partir de meados de Setembro. Em Porec, o aluguer de uma casa com vistas estava ao alcance das nossas bolsas. De manhã apanhávamos o comboio das 7:26 h, na Estação do Imperador Justiniano II, e fazíamos os quase quarenta quilómetros de viagem revendo os planos das aulas, acabando o resumo de uma comunicação ou lendo o jornal cantonal, cheio de notícias pueris, ou debates de referendos incompreensíveis em que a vitória do Não era sempre certa. Num trecho do percurso, a linha do caminho de ferro inflectia para uma zona de via reduzida, rente à praia. De um lado via-se o Adriático, sem ondas, escuro e quase pantanoso. Do outro uma escola onde todos pareciam chegar de bicicleta. Eu detesto o realismo fantástico, essa treta onde chovem flores em lugar de bátegas de água. Mas o que me acontecia nessa fase da viagem, de manhã e nunca no regresso, era da ordem do irracional. Ficava fechado numa zona detestável de mim mesmo, numa penumbra da existência, à beira da náusea, da vertigem labiríntica. Se acontecia estar apaixonado, era certo que tudo acabava naqueles minutos insuportavelmente lentos, rente ao Adriático, ou virado para os pavilhões da escola dos ciclistas, sempre os mesmos, as mesmas capas impermeáveis de corres garridas, as lanternas a tiracolo, os gorros, as sacolas. A linha de caminho de ferro inflectia para o interior e a composição ganhava velocidade. Viam-se alguns cadáveres de bicicletas, num parque, com rodas incrivelmente retorcidas e tudo ganhava realidade e som. Mas eu não recuperava nunca os amores submersos naquele soluço da viagem. Até que conheci Selma, especialista de Decimo Marco Ausonio e a quem, por piada, no Instituto chamavam Bissula. Com ela passei, incólume, o estreito do quilómetro 148, espantado e agradecido. Aprendi de cor alguns dos humildes versos de Ausonio, só para agradar a Bissula, e recitei-lhos todas as manhãs que durou a minha bolsa no Instituto Capodistria, e sempre a minha euforia a fez sorrir.

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