04 abril 2006

Uma Mulher do Mal: Lucretia Martel



No cerro há um boi que agoniza e os canos das espingardas apontam muito baixo. Em Rosário de la Frontera, na província nortenha de Salta, na Argentina. Na casa grande, as camas estão desfeitas e nunca se dorme. O amor e o desejo e a ternura estão suspensos. A Virgem aparece a uma deficiente, sobre um depósito de água, num cenário urbano degradado, uma epifania para os noticiários de televisão, entre o anúncio de arcas frigoríficas, com o mesmo volume, a mesma convicção. Os índios não são de confiança, batem traiçoeiramente, dormem com os cães, roubam as toalhas, cozinham o peixe sujo do lodo das barragens. Um cão comeu os gatos, tem uma dupla fiada de dentes e era afinal uma rata africana. Levem os cães daqui. Virgem Maria, mãe de misericórdia, vida , doçura e esperança nossa. Os homens velhos pintam os cabelos e são mandados para o quarto dos fundos. Podíamos ir à Bolívia, mas as estradas são más e não temos os papéis que pedem na fronteira. Bebe-se muito. Um refresco, põe umas pedras de gelo nessa taça de vinho. Ninguém atende os telefones. As pessoas não foram feitas para este clima. As paredes perderam a cor, a natureza invade a piscina, a casa e os corpos. A piscina tem uma água pútrida, o acidente espreita em todo o lado: uma escada, uma panela a arder, os vidros de uma garrafa, os micróbios, um tiro perdido, um índio ciumento no baile. Ninguém dorme. Os velhos precisam de alcoól, os novos de uma carícia que não há. Com os olhos abertos um miúdo parou de respirar. O outro tem meia cara destruída. Não assustes o teu irmão, rapariga. Não te vás embora, Isabel, só te tenho a ti, Isabel, a minha mãe vai-se enfiar na cama como a minha avó. No cerro, ao longe, soam os estampidos das espingardas. Não pára de chover. Tenho tanto medo, quando os miúdos vão para o mato.

La Ciénaga, 2001; La niña santa, 2004; duplo DVD, distribuição Atalante

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