Ateu
Uma vez, há muito tempo, sentia-me infeliz e sozinho numa cidade italiana. Tinha passado a noite com uma mulher que era linda, inteligente e sensível. Durante todo o tempo ela tremeu e não fazia frio. Estávamos vestidos. O quarto parecia uma cela e a cama um catre. Talvez ela me tivesse beijado. A noite era perfeita e para não quebrar essa perfeição não me mexi, não tirei as botas, vigiei-lhe sempre o tremor e a respiração. De manhã separámo-nos. À tarde cruzei-me com ela numa praça da cidade. Ia pelo braço de um rapaz italiano, menos romântico e mais activo. Ao anoitecer entrei numa igreja onde tinham espalhado incenso e um coro de vozes brancas entoava um miserere. Foi aí que me senti bem, infeliz e sozinho.
Alguns anos depois, numa outra cidade, ia todas as sextas feiras à capela de um Colégio. Saía do trabalho, percorria as ruas estreitas pedalando uma bicicleta. Chegava exausto, sentava-me numa cadeira em frente do coro, cantava os salmos. Era mais pobre do que hoje mas deixava sempre algum dinheiro à passagem da colecta. Era bom que deus tivesse existido para os construtores daquele templos, os homens que tinham escrito aqueles salmos, os rapazes que os cantavam. A mim bastava-me o cansaço físico do trabalho e do ciclismo, o jejum, a segurança de que não haveria homilia nem proselitismo. Em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro fiz os últimos passos da cruz atrás de um padre copta e de dois oficiais da igreja ortodoxa grega e católica, e deixei um bilhete numa fenda do Kosel, que o Shechinah nunca abandonou. Em Goa, relapso, acendi velas em igrejas desertas da cidade velha, e recolhi-me num templo hindu, pensando no meu pai, que perdera a fé em criança, ao colo de um velho padre de Viseu. Inspirado no Lodge de Terapia, fiz o caminho francês até ao Obradoiro. Em todos estes sítios me senti bem. O meu corpo e a minha consciência não tinham fronteiras e eu era daquele lugar e de todos os lugares, daquele tempo e do tempo infinito. Se havia deus não falava a minha língua, nem a sua aparição desagradável me pareceu eminente.
(foto de Dr. Gica, A invenção de Morel, roubada a pescada nº5)
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