Lido no fim-de-semana
(...)
Sem totem que nos proteja, entrar de rompante num caixote de fotografias afoga-nos em sentimentos melancólicos, desvelos ou dor. Eu fui isto? Isto não é a ideia que eu tenho sobre o que eu fui. E, no entanto, isto está ali imóvel e aquele esgar era eu, mais aquele vestido infeliz, mais aquele ex-amigo erradicado que, não se fazendo como Estaline, há-de ficar ali desbragadamente a rir o resto da vida.
Ou em oposição: quem me arrancou este riso neste ano tão grave? Éramos felizes quando achávamos que éramos infelizes? Não existe a verdade excepcional das fotografias (aquilo existiu, mas no momento seguinte passou-se outra coisa diferente que não foi fotografada) mas a verdade parcelar das fotografias é estonteante quando se mete com a verdade parcelar da memória.
Ana Sá Lopes (Um caixote de fotografias)
Chego a uma casa nova e trago os velhos fantasmas.
Os visíveis, inexpugnáveis. Os que não descansam.
Mudo a digamos vida repartida em móveis e estantes.
Os meus solícitos avisam que estou a prazo.
Que sempre que me habituo desvalorizo o património.
Os caixotes são deles território como o céu e as paredes.
Se não deixei a sombra não expulsei também esta companhia.
Eles são inquilinos, vitalícios como o medo.
Uma vita nuova exige novíssimos tormentos.
E esta é apenas vida velha em divisões mais amplas.
Quis que não viesse alguma carga desnecessária, memórias e bibelôs.
Veio tudo, espectral e sem fadiga.
Veio dividido em espelhos e duendes que nunca tive.
Veio nos amuletos sem efeito, nas fotos onde já não apareço.
Vidrinhos que cortam no escuro.
Hologramas meus amigos faz décadas.
Cada objecto que inauguro ganha o seu deus malévolo.
Que reina na casa toda como os lares nos romanos.
Eles sabem que me venceram.
É altura mais que doméstica para me juntar a eles
Pedro Mexia, no excelente Mil Folhas dedicado a Mário Cesariny, com o poema A um rato morto encontrado num parque em roda-cabeçalho e o texto em que Manuel Gusmão explica a filiação de You are welcome to Elsinore em Cesário Verde.
Sem totem que nos proteja, entrar de rompante num caixote de fotografias afoga-nos em sentimentos melancólicos, desvelos ou dor. Eu fui isto? Isto não é a ideia que eu tenho sobre o que eu fui. E, no entanto, isto está ali imóvel e aquele esgar era eu, mais aquele vestido infeliz, mais aquele ex-amigo erradicado que, não se fazendo como Estaline, há-de ficar ali desbragadamente a rir o resto da vida.
Ou em oposição: quem me arrancou este riso neste ano tão grave? Éramos felizes quando achávamos que éramos infelizes? Não existe a verdade excepcional das fotografias (aquilo existiu, mas no momento seguinte passou-se outra coisa diferente que não foi fotografada) mas a verdade parcelar das fotografias é estonteante quando se mete com a verdade parcelar da memória.
Ana Sá Lopes (Um caixote de fotografias)
Chego a uma casa nova e trago os velhos fantasmas.
Os visíveis, inexpugnáveis. Os que não descansam.
Mudo a digamos vida repartida em móveis e estantes.
Os meus solícitos avisam que estou a prazo.
Que sempre que me habituo desvalorizo o património.
Os caixotes são deles território como o céu e as paredes.
Se não deixei a sombra não expulsei também esta companhia.
Eles são inquilinos, vitalícios como o medo.
Uma vita nuova exige novíssimos tormentos.
E esta é apenas vida velha em divisões mais amplas.
Quis que não viesse alguma carga desnecessária, memórias e bibelôs.
Veio tudo, espectral e sem fadiga.
Veio dividido em espelhos e duendes que nunca tive.
Veio nos amuletos sem efeito, nas fotos onde já não apareço.
Vidrinhos que cortam no escuro.
Hologramas meus amigos faz décadas.
Cada objecto que inauguro ganha o seu deus malévolo.
Que reina na casa toda como os lares nos romanos.
Eles sabem que me venceram.
É altura mais que doméstica para me juntar a eles
Pedro Mexia, no excelente Mil Folhas dedicado a Mário Cesariny, com o poema A um rato morto encontrado num parque em roda-cabeçalho e o texto em que Manuel Gusmão explica a filiação de You are welcome to Elsinore em Cesário Verde.
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