É a véspera de Natal
No ano de 1992 eu trabalhava num país rico e só pude viajar na véspera de Natal. Apesar de ter comprado o bilhete mais caro, quando cheguei ao check-in o mostrador avisava que o voo tinha três horas de atraso. Não havia explicações, para lá do nevoeiro em Londres. Eu sabia pelo Rodrigo, um piloto amigo, que o nevoeiro em Londres é uma piada de baixa extracção, usada pelo pessoal de terra para não dar explicações aos passageiros que consideram desprovidos de capacidade de reclamação. Era o caso. Os meus companheiros eram emigrantes falando uma língua que se assemelha a um crioulo do latim, com excesso de bagagem, desconhecimento dos direitos, uma postura reverencial perante o país de acolhimento e a fé de que tudo acabará por se resolver a contento. Tendo sido distribuída uma senha de alimentação para um restaurante de um Hall distante, os passageiros do meu voo dispersaram. Duas horas depois o voo tinha um novo horário previsto. Não havia quase ninguém junto ao check-in. Uma funcionária recomendou-me calma e disse que se quisesse fazer uma reclamação me devia dirigir a um balcão do Hall 1. A caminho, reparei que as poucas lojas abertas desciam os estores, os empregados de limpeza recolhiam os sacos de lixo e nos ecrãs do aeroporto só restava a indicação do meu voo. No Hall 1 o gabinete da companhia em questão estava encerrado, com a indicação de que reabriria no dia 26. Pareceu-me ver alguém no interior e bati nos vidros. Um homem saiu e apagou a última luz. Como lhe manifestasse a minha preocupação ele disse-me, na língua em que falava a maior parte da gente daquele país:
- Estou desolado senhor, mas é a véspera de Natal.
Lembrei-me da senha que me dava direito a uma refeição no restaurante do Hall 4 e dirigi-me para lá. Os corredores estavam desertos e as lojas encerradas. Algumas tinham colocado no exterior um aviso que parecia ter tido bom acolhimento entre os lojistas e dizia:
- Boas Festas. Um Natal Feliz. Nós voltamos depois do Natal.
O Restaurante estava no segundo andar do Hall 4 e tinha duas salas. À entrada da primeira tinham escrito à mão, na língua do país, numa folha colocada sobre o menu:
“Fechado”.
Na segunda sala havia luz e entrei. Numa mesa um homem comia com uma miúda, o que me tranquilizou. Uma empregada aproximou-se e disse que estava desolada e que o restaurante tinha encerrado. Tinham tido um jantar para os passageiros de um voo em atraso e, infelizmente senhor, já não havia comida.
Retorqui que se estava precisamente a referir ao meu voo, eu fazia parte desse grupo e eram horas de jantar, embora não parecesse. Quando acabei esta frase olhei em volta. Pela vidraça panorâmica do restaurante via-se a pista. Não havia movimento de aviões. Não havia luzes de sinalização.
O homem que jantava acompanhado da filha levantou-se. Reparei que coxeava. Perguntei-lhe se era um dos passageiros do meu voo. Ele disse que tinha vindo despedir-se de familiares e que acreditava que estes já teriam partido. Entretanto, a empregada despira a farda e pedia para sairmos. Boas Festas, acho que disse.
Voltei ao meu balcão. Antes de olhar já sabia que a hora do voo tinha sido mais uma vez alterada. Não havia ninguém. Num balcão em frente vi um homem de uniforme a mexer nuns impressos. Corri para ele e perguntei-lhe o que se passava, para onde tinham ido todos. Ele quase não se mexeu. - É a véspera de Natal, senhor – julguei ouvir-lhe. -Mas eu tenho um bilhete para casa, gritei-lhe. Tenho de voltar para casa, gritei-lhe.
Ele parou, olhou-me como se me reconhecesse e disse:
- Ao que julgo saber o senhor não tem casa. É pelo menos a informação que temos.
Acreditem. Na língua daquele país esta frase é muito impressionante.
(foto de Jeff Wall)
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