11 janeiro 2007

Augusto J'Blair, o autor de O Bolor


Marina Abramovic



Os bolores andam muito activos. Viramos as costas e eles pintam tudo. Um dia destes vi um moço mascarado. Perguntei-lhe de que estava vestido. – Sou um bolor, respondeu. Parecia orgulhoso. - Como é ser um bolor? Os pais acudiram e a conversa estragou-se. Não tenho nada contra os bolores. O meu pai ensinou-me a não ter medo do bolor. Ele admirava Fleming e o Penicillium notatum. Por causa disso stive quase para ser Alexandre. Como levava a sério o combate ao culto da personalidade ele acabou por nos pôr nomes de família ou de gente das feiras. Nessa altura Augusto Abelaira escreveu O Bolor. Abelaira não figura no Google, nem na Wikipedia. Se pesquisarmos, perguntam-nos se não queríamos dizer Augusto J'Blair. Augusto J'Blair, o autor do Bolor. Pensei nisto enquanto comia um pão com o queijo onde o bolor se infiltra. Tinha trazido dois pães da padaria, de um shopping. Há qualquer coisa de humilhante quando se pedem dois pães numa padaria, se come sopa sozinho num restaurante ou se entrega a roupa na lavandaria. Como se estivéssemos a revelar a nossa solidão. Às vezes não aguento e compro dez pães, com o ar apressado de quem tem uma família esfomeada à espera do lanche. Mas o pão já não cabe na arca frigorífica e é pecado desperdiçar comida. No mês passado tive uma hemorragi, durante o sono, e acordei com o lençol quente e viscoso. Lavei-o na banheira, corei-o, como o ovo de cuco, num estendal das traseiras, entre a roupa dos vizinhos. Neste shopping, onde comprei os pães, não se vê ninguém. Algumas lojas ainda aspiram ao trespasse. Um café sobrevive com dois namorados. Ela diz: - A linguagem é totalmente arbitrária, com o ênfase com que diria que a sopa de grão-de-bico é indigesta. A voz deles ressoa no hall. Há cinemas fechados, a sede da JS que não chegou a ser inaugurada, uma loja com uma montra de soutiens copa D, como só pensava que se vendessem na Roménia de Ceasescu. Isto sim é decadência. Aqui posso comprar dois pães a um homem que me atende com gravidade, mostrando que é importante poder vender dois papos-secos. Dois papos secos e uma rabanada, para ser sincero. A rabanada faz toda a diferença. Quando comecei esta história era sobre o bolor. Nunca pensei falar na rabanada. Não consigo dizer a palavra vulgar, mais vulgar que a fatia de pão com leite e açúcar. Só apontei, através da vitrina, o dedo esticado para o prato. - Uma fatia. E ele, enquanto embrulhava os pães: - Uma rabanada. Então é uma rabanada. Vai levar dois pães e uma rabanada. São cinquenta cêntimos, a rabanada.

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