HOME, SWEET HOMELESS
Jeff Wall
I
um sem abrigo que frequenta as bibliotecas de arte
escreve sobre um pedaço de esferovite que acaricia,
entalhada como uma pequena ardósia das primeiras letras.
folheia com cuidado a enciclopédia britânica
e balouça levemente o corpo para apreciar alternadamente
o alívio das nádegas bem sentadas numa poltrona civilizada.
o ar condicionado ronrona e fez-lhe vestir todas as roupas sem estação.
sofre de uma magreza endurecida e não parece preparado para o calor.
estamos no auge do verão e usa um boné de ir para a neve.
isso não parece incomodá-lo.
mergulha os livros na estante com um leve afagar na lombada.
II
apanhados pela chuva no museu gulbenkian,
já não estamos apaixonados,
nem vemos sem abrigo afectivos.
há famílias de domingo e cinéfilos a tragar madalenas,
há empregadas de mesa com aventais incorrectos
e gargalhadas sonoras como só os lisboetas semi gingões e semi cultos sabem dar.
é maio e chove como num dia de outono.
o ar não está condicionado.
um rumor de gente frágil sente a chuva lá fora e contempla as velas acesas
do lado de dentro de fora.
uma névoa interna atravessou os anos e ainda temos os movimentos tolhidos de sonolência e receio.
lentidão ao chegar e lentidão ao partir, o mundo continua
e soergue-se no cotovelo.
onde está o sem abrigo do boné de esquiador?
apanhados pela chuva, esperamos e tememos.
sent by//rosaarosa
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