A minoria mínima
Les Amours d'Astrée...Eric Rohmer
Cresci na ilusão democrática. Embora nos contássemos pelos dedos de uma mão, isso era uma circunstância. As massas populares, que tinham escrito a história, desde a Roma de Spartacus até à recente Cuba dos guerrilheiros românticos, irromperiam em cena também neste país. Viriam de barco, desaguando no Rossio, como previa o poeta no seu primeiro livro. Seríamos muitos, nesse dia limpo, nessa madrugada clara. Quando comecei a pensar, o que aconteceu tarde como os que acompanham estes posts já sabem, percebi que não tinha confiança nenhuma nas massas populares. Os verdadeiros proletários desiludiam. Diziam-me: são o lumpenproletariado. Entre mim e os camponeses houve sempre, injustamente, os gritos do porco na matança, a cacetada no coelho, a degola das aves ou a textura do diospiro. Já com os intelectuais as coisas eram mais fáceis. Não com os artistas. Gosto do produto da actividade dos artistas mas assusta-me o desequilíbrio, a precaridade, o experimentalismo e o sexo em grupo. Professores, só universitários, da espécie em licença sabática permanente. Com os outros confesso ter pouca empatia: horários de vinte e sete horas semanais, problemas de disciplina, depressão na Páscoa, pneumonites ao giz, colocação no quadro de zona pedagógica. Não resisto a tamanha miséria. Gosto dos artífices e artesãos: carpinteiros, estofadores, canteiros, ferreiros. Mas parecem estar em extinção. Também gosto das floristas, das que nunca cheguei a conhecer: a da Estrada de Benfica, a florista de Mangualde. Acontece que todos estes grupos, que enumero, já não têm sindicato, associação só liquidatária. Aproximei-me demasiado dos especialistas em arte conceptual, dos psicólogos evolucionistas, dos neurocientistas, dos geólogos que estudaram a última glaciação. Por um motivo ou outro fui rejeitado.
Tentei ser de uma minoria que se visse. Eles fecharam-se, grupusculares. Comprei um carro alemão. Recebo convites para a sede sempre que um novo modelo é lançado. No parque de estacionamento dos Correios, o carro foi tão amassado que está irreconhecível. Na última revisão o recepcionista da marca alemã olhou-me com o desprezo que reservam aos que estão no segmento de entrada, com idade para o topo de gama.
Foi assim que me habituei à mínima minoria. Nos filmes somos quatro. Na livraria os livros estão sempre na prateleira de baixo, ou não há em stock, ou têm que mandar vir de Campo de Ourique. Nos colóquios a única desconhecida está na sala por engano e levanta-se incomodada com o barulho. Na exposição só depois da inauguração. Se nos reunimos, não temos o quórum exigido por lei. Os filmes têm sempre a estrela pálida da comiseração, quando passam na TV é a desoras . Não sou leitor fiel de nenhum jornal. Os melhores concertos têm sempre lugares vagos na plateia. Vivo em casa arrendada. O clube da minha vaga simpatia milita nos distritais. O meu telefone está sob escuta.
Etiquetas: baixo de gama, confessional, maioria/minoria
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