Do crepúsculo da Europa
Bem me parecia que dali não podia vir felicidade. Para além de quase só
conhecerem o cinzento e os tons desmaiados do sol da meia noite, os
pobres-ricos dos finlandeses falam aquela língua rude que pudemos ouvir e na
qual o sentido de humor não parece estar muito à vontade. Ou melhor, eles
até têm algum sentido de humor, mas dizem tudo com uma cara tão séria que só
nós é que nos rimos. Bem, sorrimos. Estariam a dizer mesmo aquelas coisas
que líamos na tradução? Se calhar aldrabaram-nos...
A língua é que os trama. Não bastava o clima e a distância que enterra 1/4
do seu território acima do círculo polar ártico o que já de si é a imagem do
inferno, ainda têm uma das línguas mais lixadas da europa. Lixada mesmo,
porque parece lixa na madeira.
Imaginem só que o finlandês é da família das línguas urálicas (o que, para
começar, não augura nada de bom) e não entra nessa vastíssima caldeirada do
indo-europeu (tal como o basco que parece uma língua de onomatopeias e
cliques infantis trazida por Ets).
Mas isso ainda é o menos!
O pior é que tem 15 casos! 15! Alguns com designações e funções mais ou
menos parecidas com as do latim ou do grego clássico, mas outros
verdadeiramente extraordinários!
É o que acontece com o caso ESSIVO - caso do adjunto adnominal de parte - e
cujo uso linguístico mais parece uma dor abdominal. Têm também casos com
nomes arrepiantes como o INESSIVO, ELATIVO, ILATIVO (nem me atrevo a dizer
quando e como são usados - esperemos que eles próprios, os casos, o
saibam...).
Mas os campeões ex aequo são, sem dúvida, o caso ADESSIVO, sim adessivo,
(adjunto adverbial de lugar externo - que é onde eles, finlandeses, todos
queriam estar: dali para fora), e o caso ABESSIVO - adjunto
adverbial/nominal de ausência, exactamente meus amigos, de ausência,
imaginem que têm um caso para a ausência e a que puseram um nome que resulta
do cruzamento entre abcesso o obsessivo! E isto pronunciado em finlandês que
ainda deve soar mais abessivo. Era o mesmo que termos em português o género
masculino, feminino e género saudade, por exemplo, ou, género improviso...
Para compensar tanta ausência, solidão e vontade de dar de frosques, têm um
caso COMITATIVO (de companhia, um complemento de dama de companhia, enfim -
e têm também a NOKIA) e o caso INSTRUTIVO (de instrumento, que me parece
mais interessante pelas possibilidades sexuais que insinua).
Para remate, a cereja em cima do bolo, ou melhor, do gelado: nos verbos não
há tempo do futuro! Estava-se mesmo a ver que eles não têm a ideia de
futuro, não sabem se lá chegam, com tanta tristeza e tanta indiferença de
uns pelos outros. Ali é que se vive verdadeiramente a sentença salazarista
do "ninguém sabe o dia de amanhâ!"
Em contrapartida têm 4 modos verbais ditos "populares" e um outro, o
EVENTIVO, que só aparece no KALEVALA, o poema épico dos finlandeses. Este
eventivo é para a eventualidade de alguém querer escrever a continuação dos
"Lusíadas" lá do sítio. Inventam bem, inventam.
Fiquei foi um bocado abalada com o facto do finlandês ter 4 formas para o
infinitivo! Eu que tinha tanto orgulho em termos, muito acima das outras
línguas mais próximas, 2 infinitivos que são tão difíceis e inúteis de
explicar aos estrangeiros que estudam português e aqueles sacanas dos lapões
batem-nos aos pontos com 4 infinitivos! Não sei como vou dormir hoje com
este desgosto linguístico.
Bom, confesso que me diverti mais e ver estas coisas na net do que a ver o
filme, mas também não iria à net fazer uma consulta sobre a língua
finlandesa senão fosse o filme. Entretanto, pelo sim pelo não, vou passar a
evitar o nome de Aki Kaurismaki. Uso o caso EVITISSO.
Ps: Fui à sala e está o Graça Moura há horas a vociferar contra o acordo
ortográfico. Apesar de suado e com os dentes negros de tabaco a precisarem
de uma urgência ao higienista, apesar do ar apopléxico de quem salva os
"Lusiadas" a nado, bem pode o homem dar-se por contente: se o acordo fosse
para uniformizar o finlandês (suponho que o do norte, sul, este e oeste da
Finlândia) haveria de se ver grego. E pelo aspecto dele, pouco apolíneo...
Boa nôte!
/sent by Rosaarosa
Etiquetas: Aki Kaurismaki, Finlândia, Graça Moura, ugro-fínico
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