16 setembro 2008

Virá a crise e nós a festejar



Jeff Wall




Estamos a jantar na tasca da rua dos Azeiteiros que é a nossa tasca favorita. Sobreviveu a várias mortes, algumas excessivamente dolorosas para as evocar agora, e estragar este texto que começou leve e se tolda logo no início. Tememos pelo seu destino depois de ter entrado no guia do routard. Hoje à noite, ao nosso lado, um casal em que ela é claramente de Berwick-upon-Tweed e ele de outra aldeia de Northumberland. Não se sabe o que une este par mas o que os separa é uma cabra velha, morta e cozinhada em vinho, à qual ela se dedica com tal empenho que não parece reagir aos afagos maquinais do rapaz, de cada vez que ele se lembra que estão de férias e num país romântico. Vou deixar estes dois comer em paz. Estamos a jantar em silêncio depois de ver as notícias. Parece que um dos maiores bancos americanos faliu. Vimos os funcionários a sair, puxando por caixotes de cartão como por cães teimosos. E Bush, com o ar de clown trágico que ultimamente exibe, a garantir que se trata de reajustamentos, e que a médio prazo a abundância voltará. Já ninguém o ouve, já ninguém se lembra da confiança ingénua de quando partiu para a guerra. Os que o apoiaram, os que aqui escreveram por ele, já se esqueceram. Começou o Armagedão, a crise dos prime e dos spread. Ninguém se preocupa a explicar o que isto é. Um parolo diz que a crise não chegará à Europa, e muito menos à nossa patriazinha, como o outro garantia da gripe ou da guerra de Tróia. Vimos os comentadores. O de esquerda pareceu-nos, como a pivot, escandalosamente bronzeado, em termos de onda verde e de prevenção do melanoma e do envelhecimento cutâneo. O de direita usa Farandol, que parece ser um emblema capilar da direita televisiva, e não só, atingindo Meneses e Passos Coelho e não poupando o ficcionista Rodrigo Guedes de Carvalho . A crise tinha assim atingido o coração do Império e ninguém para explicar às multitudes o seu significado nem maneira de a tornar revolucionária. Foram as saudades do marxismo e a necessidade de festejar a contraciclo que nos fizeram ir à tasca onde tínhamos tido refeições tão felizes, e nos levaram a aceitar que tudo mudara e tínhamos de partilhar aquele espaço com turistas de Setembro, jovens demais para terem filhos escolarizados ou suficientemente velhos para, como nós, passear quando os outros já reentram. Jovens como o casal de Northumberland, explicando a chanfana ao nosso vizinho da mesa da direita, o Martin Amis, ou olhando melhor, o Kingsley, ou o pai do Kingsley. E então reunimo-nos todos em torno destes pratos simples que fazem a glória do guia dos routards, e um de nós, a mais dotada, ensina a açorda aos inocentes. Assim passámos a primeira noite do Armagedão, quando ainda ninguém escrevia sobre a coisa, e houve tempo para nos rirmos sobre o livro em que o Fernandinho escolheu, para o Instituto Camões e para os incautos que o compraram, os cem melhores livros do século XX, misturando o Desassossego com Adolfo Simões Muller e concedendo um lugar de honra a um livro de Molder. Que venha a crise e nos encontre aqui, leccionando the food of poor people, agora a dez euros sem recibo.

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