21 novembro 2009

Os pescoços. Laura Gibson






Estava no palco sentado a um canto, atrás das colunas e dos amplificadores, com Laura Gibson , a cantora indie-folk de Coqueville, Portland, Oregon, de perfil postero-inferior e o público de frente. A pedido da organizadora, o público sentara-se no chão do bar. Como eram numerosas, as pessoas pareciam um manto orgânico, por vezes sonoro, brilhando como um lago de leve ondulação. Embora a dicção de Laura Gibson fosse perfeita, o modo como cantava, separando e juntando as sílabas inesperadamente, e o meu inglês sofrível, distraíam-me das canções e levavam-me para a sala. Havia várias coisas notáveis nesse conjunto de pessoas que tinham em comum quererem ouvir Laura Gibson nessa sexta-feira à noite, no espaço confidencial de um bar esquisito. Mas por agora interessa-me falar dos pescoços. Alguns dos ouvintes tinham longos pescoços. A palavra é feia, na nossa língua e em quase todas as que conheço. Colo, é melhor. Mas na nossa língua, como sinónimo de pescoço, colo significa um pescoço curto e grosso. Nada que entusiasme. Cou é breve de mais, como neck. Mas pescoço, como caroço, tremoço, tem sílabas a mais e uma grosseira sibilância final. Com a agravante de juntar o che que caracteriza a fala lusitana ao ou broeiro. Che che, ou ou, sse sse. E tudo junto e seguido ainda por cima no masculino. Pescoço, plural pescoços. É quase impossível falar disto sem tropeçar nesta dificuldade. Cerviz é pior. É uma palavra moral. Designa o que não se deve dobrar aos poderosos. O que se deve entregar apenas em certos momentos e a pessoas certas, os amantes entusiastas. Cachaço é um desastre.
Fiquemo-nos pois pelos pescoços que , a espaços, faziam ondular as cabeças da mole sentada que era a assistência do espectáculo de Laura Gibson ,essa noite de Novembro, no bar esquisito.
O pescoço é a auto estrada dos cabos entre a cabeça e o corpo. A saber: a laringe, o cabo do ar; as artérias carótidas e as veias jugulares, os vasos do sangue rutilante e do sangue escurecido pelo pensamento; a coluna da cerviz, com os fios finos da sensibilidade e os cordéis que mexem os membros; o tubo da comida mastigada, os gânglios do sistema nervoso autónomo e os linfáticos. Tudo devidamente acondicionado pelos músculos salientes que permitem que a cabeça se levante, rode, flicta, se incline para um e outro lado como um joy-stick oleado e ardiloso.
Vejo pois os pescoços que a luz e o entusiasmo dos ouvintes revela, no chão do bar, agora à direita segurando uma cabeça que trauteia um refrão que não vou recordar, depois em frente, engolindo em seco, finalmente ao fundo, abandonando-se num ombro de lã. Os pescoços, apesar do nome, brilham na sala.

5 Comentários:

Blogger M disse...

Que maravilha!
M

sábado, novembro 21, 2009  
Blogger Mané disse...

"O pescoço é a auto estrada dos cabos entre a cabeça e o corpo".Parágrafo fantástico.Bj

sábado, novembro 21, 2009  
Anonymous candida disse...

bom texto, mas discordo.


meninos- lição nº 21: COU e seus amigos

pescoço é uma palavra unisexo: um homem com um pescoço sólido, uma mulher com um pescoço curto.
um homem não tem colo, tem calhaço, quando muito pescoço. colo é aquele espaço de nudez k espevita o olhar de um outro sobre o k se esconde :) e, nesse sentido, é um elemento extremamente sedutor de algumas mulheres.
uma mulher com um cerviz esquisito sofre de candidíase e em caso de homem é gay.
já cou é universal e inter-racial.

:::)

sábado, novembro 21, 2009  
Anonymous António simplesmente disse...

Auto estrada, não diria tanto. SCUT também não. Estrada?
Calha, talvez, porque não tubo, algo broeiro, ainda que nada sibilante. Manilha não, de todo, referência escatológica.
Auto estrada, seja, mas com hífen.

sábado, novembro 21, 2009  
Anonymous fernando f disse...

Do local mais improvável para observar o espectáculo, ao desenrolar duma narrativa espectacular.Boa noite, com a devida vénia, ou seja, Vergo-lhe a cerviz.

domingo, novembro 22, 2009  

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