15 dezembro 2009

Não chateiem


Diane Arbus

Para começar uma banalidade: acho que as famílias são importantes. Como lugar de convívio intergeracional, com uma mesa comum, onde além de comida haja calor humano, respeito, amizade, televisão fechada, auscultadores guardados e um tempo para contar e para ouvir. Também acho que o sucesso da espécie humana teve algo a ver com a existência de um pai caçador e de uma mãe recolectora. Mas uma das características da espécie é a diversidade de formas relacionais e sociais e a intervenção da cultura como factor de liberdade e de modulação da brutalidade biológica. A família burguesa vitoriana coexistiu com a prostituição feminina institucionalizada e com a miséria das mulheres operárias, sobretudo aquilo a que Clara Zetkin chamou “o ultraje da exploração das crianças proletárias” no início do sistema fabril.
Nas sociedades ocidentais contemporâneas vários tipos de famílias: famílias “tradicionais” nucleares, monoparentais, recompostas, e a família da Dra. Isilda Pegado, todas partilhando a educação dos filhos com os profissionais das creche e infantários e todas mais ou menos “saturadas” por uma multiplicidade de tarefas, relações e tecnologias enfrentando a ameaça da “fragmentação do caos e da descontinuidade” (Gregen, 1991).

A resistência da família nuclear é patética. Incapaz de enfrentar os monstros do sistema económico que criou, tão ameaçada como as outras, refugia-se no conservadorismo obsoleto: a cena caricata dos jovens que fazem claque às graçolas do Pedro Picoito e ao fim-de-semana recolhem assinaturas contra o casamento gay é uma das expressões deste activismo sem sentido, nem vitórias que não sejam pírricas. Tanta causa neste mundo para abraçar- os que precisam de causas e de abraços. Tanto problema para resolver- os que acham que os problemas se resolvem. Tanta criança debaixo das pontes. E eles preocupados com o casamento gay. Porque é que não vão reciclar o lixo, brincar no campo com os filhos, passear nas montanhas, namorar em qualquer lugar, cozinhar legumes, ler As Ondas de Virgínia Woolf. Porque é que não deixam os outros ser. Simplesmente como eles são. Inteligentes uns, menos outros. De blaser assertoado ou de T-shirt. De sapatos de vela ou Allstars. Como eles, ou de outra maneira. Não chateiem. Deixem ser.

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7 Comentários:

Blogger Filipa Júlio disse...

"just be" - já dizia o calvin klein, esse grande filósofo do século XXI.

terça-feira, dezembro 15, 2009  
Blogger Isabel disse...

cada vez gosto mais de ti, Luís, puseste as coisas no devido lugar. Mas não chateiem também aqueles que para legitimar o casamento gay reduzem a família "tradicional" à hipocrisia ou à mulher a levar porrada e o marido a ir às putas.

terça-feira, dezembro 15, 2009  
Anonymous DHX400 disse...

A questão é que esse tal sucesso da espécie humana é uma aldrabice inventada por vários doentes. A ideia de familia tem responsabilidades claras no estado das coisas e o melhor que se tem a fazer é apontar pistolas de alcances vários aos senhores dos bons costumes.

terça-feira, dezembro 15, 2009  
Blogger aj disse...

isso não será uma espécie do 'deixem-me trabalhar' em versão pop-caviar?

terça-feira, dezembro 15, 2009  
Blogger Luís disse...

aj, pop não está mal. Já caviar... Mas para o pessoal das febras qualquer esparregado é caviar.
E o comentário é despropositado. Eu não estou a pedir para que cesse a crítica, enquanto legislo, como fez o senhor a que se refere. Estou a pedir às maiorias heteropossidónias que deixem os outros viver a sua vida. Faz diferença não é?

quarta-feira, dezembro 16, 2009  
Anonymous fernando f disse...

A simbiose entre texto e a ilustração é fabulosa.Isto aplica-se em geral a todos os posts do Luís.
Como se vê pela expressão do fotografado, está um bocado á rasca para dar com a coisa, e á falta de melhor ideia, vai mesmo atabalhoadamente. São de facto assim os tradicionais, são patéticos na defesa da tradição.
É por este, e mais uns quantos, que não entendo a cruzada do Miguel Sousa Tavares, contra a blogosfera, por muitas razões que tenha, basta-lhe vir de quando em vez ao Mal, para se sentir compensado.

quarta-feira, dezembro 16, 2009  
Blogger aj disse...

esse legislar a la 'deixar-cada-um viver-a-sua-vida' parece-me um critério do tipo dos 'a la carte'. ok, concedo, é um critério como outro qualquer; cada um pode assertoar o blazer como quer, ou seja então cada um poderá tb usar os institutos jurídicos do estado como quiser. É a sua extrapolação. E é essa extrapolação que eu tb acho, digamos, despropositada. Como referiu a sua 1ª comentadora ' just be' foi bom para promover cuecas; ora talvez não se aplique primorosamente a tudo.

quarta-feira, dezembro 16, 2009  

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