Procissão no Chiado
William Kentridge
Não consigo escrever sobre a realidade. Não consigo escrever sobre a pedofilia e a Igreja Católica, por exemplo. São dois aspectos da realidade que me ultrapassam, sobre os quais nunca adquiri conhecimento que permitisse reflexão ou opinião profunda. Vivo sem eles, são raras as vezes em que me apercebo que existem e não os percebo. Na semana passada estava em Lisboa, era domingo e uma procissão descia da igreja de S. Roque. Que estranheza. Na mais cosmopolita área da cidade, uma procissão. Mesmo eu, que ainda trago nos ouvidos o murmúrio dos autos-de-fé e li as descrições do grande terramoto que havia de celebrizar o Rui Tavares, olhei para aquela gente que descia do Largo da Misericórdia como para uma feira medieval. À frente, com opas amareladas, os irmãos vivos. A seguir, um padre e alguns acólitos segurando o ícone torturado. Depois o povo. A encerrar o cortejo, imponentes, saídos dos livros do Estado Novo, o Juiz, o vice Juiz e o Secretário. Nos passeios, os turistas fotografavam, vorazes. A primeira cidade africana, como diz John Berger. E saltitantes, roliços, com voz de contralto, alguns padres em traje de solenidade, tentavam chegar-se à cabeça da procissão. Os irmãos vivos, apesar dos ornatos e vestimentas, tinham o péssimo aspecto que a velhice em geral e a pobreza em especial dá aos infelizes: o mau estado oral da população, as raízes brancas anunciando o cabelo empastado, como se um meme de quase-rastas tivesse percorrido aquelas cabeças crentes, ou a asa de corvo do farandol nos homens mais cuidados, a cor baça da nefrose, o bronzeado talassémico. Surpreendida pelo quadro, a alta adolescente que estava comigo baixou os olhos e vi na sua reserva o pudor para com aquela gente e a reprovação pelo meu espanto. Ao contrário do que é hábito eu percebi-a, ah, ao menos esta vez eu percebi-a. Porque havia naquela marcha essa ambiguidade entre um acto público- uma comunidade que se deixa ver naquilo que a une- e o que o rosto das pessoas transmitia, sobretudo o das burguesas decadentes do segundo grupo, amontoadas antes da vara de prata do Senhor Juiz e as medalhas dos Corpos Gerentes. Estas mulheres pareciam zangadas com a sua exposição. Havia, claro, algumas faces tranquilas, de mulheres de trabalho a dias. Mas a maioria eram reformadas ou pensionistas, óculos de contrafacção e semblante carregado, cantando estrofes que celebravam o sofrimento e a glória do Senhor sem disso retirarem nenhum consolo. Pareciam querer arremessar a sua fé aos pecadores surpreendidos do Chiado.
Assim iam, no domingo de Ramos, os irmãos ainda vivos de S. Roque.
Acho que a Igreja Romana, de Ratzinger e do cardeal Saraiva, tem um problema para resolver. Mas, como o José Manuel Fernandes brilhantemente demonstrou, não me parece que esse problema seja o dos jovens abusados.
Etiquetas: Igreja Católica, pedofilia
10 Comentários:
olha, para a próxima que vieres ao Chiado, diz (quem ouvir isto pensará que somos costumeiros nisto, eheheh). há um lá um poeta, de pedra e cal, ou será ferro?, que nos acolherá. :)
Nestas alturas é que eu invejo os espanhóis que não têm vergonha de transformarem a sua semana santa num dos maiores cartazes turísticos e de expressarem a sua fé, tradição e cultura, aos gritos de Guapa, Guapa, à imagem da virgem da Macarena, sem medos ou receios saloios e provincianos que lhes chamem africanos. Como se as paradas do 4th of July fossem grandes exemplos de modernidade e de cosmopolitismo, ou as anacrónicas paradas bélicas do quatorzieme de Juillet manifestações da razão e união dos povos. Antes procissões do crucificado no Chiado que carros de combate com coronéis medalhados que nunca viram a guerra de frente.
Luís,
o teu texto provocou-me um comentário. Está lá no blogue.
Este comentário foi removido pelo autor.
"Saídos dos livros do Estado Novo"- a propósito do Juiz e do vice-Juiz da Irmandade de S.Roque? Explique lá o que é uma procissão bastante antiga tem a ver com o triste regime que menciona? Não misturemos alhos com bugalhos...
Caro Luís Barata
Obrigado pela questão que me
Aconselho-lhe a biografia do Cardeal Cerejeira da I F Pimentel (tem fotos).
Para primeira leitura (alhos) pode servir.
Depois, se me der a honra, podemos passar aos bugalhos.
...pela questão que me pode permitir aprofundar o tema...
Caro Luís:
Ainda não li a biog. de Cerejeira escrita pela Irene F.Pimentel, mas está na calha, mas desde já lhe digo que não preciso dela para saber que reduzir o Cardeal a mero apaniguado de Salazar é demasiado simplista.
Mas mesmo concedendo que a Igreja Católica Portuguesa, ou melhor a sua hierarquia máxima,esteve próxima do "Antigo Regime" também não é menos verdade que muitos exemplos tanto do "baixo clero" como dos laicos chamados "católicos progressistas" estiveram bem longe da adesão ao regime. E D.António Ferreira Gomes, se bem que caso isolado, foi um bom exemplo de que nem tudo eram rosas...
Peço desculpa mas a extensão do comentário, mas incomodam-me algumas generalizações - os tais alhos com bugalhos...
Dea cordo Luís Barata. Completamente.
Puz o seu texto no meu bloguepor o achar muito interessante ( o que já me valeu uma série insultos online... )
Também eu prefiro o folclore espanhol, assumido como tradição turística a este miserabilismo triste e envergonhado de velhos pobres e infelizes que paira das manifestações confessionais portuguesas.
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